Em nossa primeira conversa aqui na coluna, falei de maneira bem geral a respeito do ofício de escrever, tentando explorar a questão da escrita como algo não dado, mas construído. Bom, já que falei antes sobre a necessidade de prática, de busca por referências e trabalho discursivo, vou trazer agora um assunto que considero fundamental quando se trata de escrita de ficção: a verossimilhança.
Muitas vezes entendida como a reprodução da realidade, verossimilhança se trata, na verdade, de um recurso narrativo que alicerça a história que desejamos contar e que não necessariamente combinará com a ideia de verdade/realidade que temos a priori. Afinal, realidades podem ser construídas, ou o que seria das histórias de fantasia e ficção científica?
A construção de mundos ficcionais está intimamente ligada à noção do que, no pacto com o leitor, será possível e esperado que ocorra dentro daquele universo. Esse pacto tem a ver com a referenciação e com a coesão interna e externa do texto — ora, mesmo em uma narrativa que traz elementos fora do mundo como o conhecemos, é necessário que tenhamos algo de base de comparação, o que, pensando bem, é o que leva muitas pessoas a desgostarem de gêneros de ficção especulativa. Deixando mais claro: há a verossimilhança interna — que dá conta dos elementos da narrativa que, espera-se, funcionem de maneira coerente; e a verossimilhança externa — aquilo que já trazemos de bagagem e relaciona-se ao que já esperamos ou consideramos provável. No caso das narrativas fantásticas, há uma expectativa intrínseca de que o que temos de dado do “real” seja descontruído. Logo, é verossímil a quebra de paradigmas.
Apesar do mimetismo* ser um dos mecanismos da construção de mundos, não é o único. O simbolismo, as metáforas e os arquétipos são outros aspectos que tornam a manifestação de uma narrativa possível. Sobre wordbuilding, sugiro ao leitor que dê uma olhada no post de estreia da coluna do Diego Mendonça, em que ele aprofunda mais a questão em relação à fantasia e à ficção científica.
Verossimilhança se trata, antes de mais nada, de necessidade e de possibilidade. Necessidade por se ligar diretamente à carpintaria narrativa, dando forma ao cenário. Possibilidade, pois, uma vez entendido que histórias são representações e interpretações de um dado tema/premissa/discussão, as alternativas de explorá-lo são inúmeras, sendo assim, a elaboração do real também.
Por fim, antes de me despedir, peço que observem — mais uma vez — o quanto referências são importantes no campo discursivo. São as referências que permitem a existência de leitores mais abertos e mais atentos ao simbólico, que, nas boas obras, subjaz ao que é dado. Algo que, em muitos casos, gera incômodo. Aliás, incômodo faz parte da arte — será que esse pode ser assunto para um post futuro?
Para arrematar o papo de hoje, deixo um trecho — provavelmente reproduzido um bom número de vezes — da Poética, de Aristóteles, que corrobora com o que, de maneira mais objetiva e pontual, coloquei aqui a respeito do que é da ordem do verossímil:
“[…] se manifesta que não é ofício do poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade.” (Aristóteles, da Arte Poética, Martin Claret, 2003)
*[Nota da redatora]: Mimetismo tem a ver com mimese, que, grosso modo, é a representação ou imitação de algo, levando a uma reprodutibilidade. Vem do pensamento platônico, no qual o mundo sensível é, na verdade, uma mimese do mundo das ideias. A própria ideia de meme vem de mimese (mais especificamente, de uma genética de imitação no que diz respeito à referenciação na cultura mainstream).