41 anos de xenomorfismo
“Alien: O oitavo passageiro” é um desses filmes que dificilmente passam desapercebido diante dos olhos de qualquer adorador da cultura pop. Lançado em 1979, pode ser considerado a epítome dos filmes de ficção-científica e horror. O filme tem a direção de Ridley Scott, que, ainda jovem, havia chamado atenção com sua estreia como diretor em The Duelists (1977). O autor do script, Dan O’Bannon, que havia participado da — infelizmente — fracassada tentativa de Jodorowsky em adaptar Dune[1], havia anteriormente trabalhado em vários “postos” na produção de Dark Star (1974) e escrevera o primeiro rascunho de Alien (título original), enquanto morava de favor na casa de seu amigo Ronald Shussett, que também contribuiu para o texto.
Distribuída pela 20th Century Fox, essa obra prima da ficção-científica e do horror faturou milhões de dólares e muitos prêmios ao longo dos anos, sendo o mais notório deles o Academy Awards, por melhores efeitos especiais.
Mas o que fez de Alien uma magnum opus do cinema de horror? A resposta está no time, nos detalhes, em uma confluência tempestuosa de ideias que, separadamente, não teriam gerado um prodígio assim tão admirável e… terrível!
O plano da obra é simples, e já havia sido explorado antes… o próprio O’Bannon disse “Eu não roubei Alien de ninguém, eu roubei de todo mundo!”[2], isto referindo-se a alguns filmes anteriores, dos quais teria retirado elementos isolados que vieram a compor o todo de seu script[3]: basicamente — sem spoilers! —, um grupo de astronautas, a bordo de uma nave chamada Nostromo[4], despertam do hipersono após receberem um sinal de ajuda vindo de um planetoide. O que se segue é simplesmente uma das narrativas mais tensas e escabrosas já escritas e filmadas. Não posso deixar de falar, é claro, na personagem Ripley[5] (Sigourney Weaver), essa quebradora de barreiras e de padrões, que mostrou, ao mesmo tempo, poder, resignação e beleza. Pois em uma época na qual protagonistas femininas eram somente encontradas em filmes românticos, ou como vítimas nos filmes de terror (Scream queens), em Alien, Ripley tem o papel de um Rambo, mas mais que isso, a dicotomia de sua frieza e medo diante da situação desesperadora a bordo do Nostromo tornou-a uma personagem essencialmente humana, uma heroína perfeita (aos olhos deste que escreve), distante da necessidade de um Deus Ex Machina, ou de superpoderes repentinos para resolver os problemas.
O elenco está recheado de bons nomes, como Ian Holm (Ash), John Hurt (Kane) e Tom Skerrit (Dallas), Veronica Cartwright (Lambert), Yaphet Kotto (Parker) e Harry Dean (Brett), não deixando de lado Bolaji Badejo, que assumiu a fantasia do Xenomorph[6], e tinha impressionantes dois metros e dezoito centímetros de altura!
Alien recebeu, como dito, diversos prêmios e chegou até mesmo a ser considerado um dos maiores filmes do gênero. Na opinião do redator, é definitivamente o maior filme de horror de todos os tempos, mas algo mais na obra chamou-lhe a atenção, tanto quanto o design mórbido de H. R. Giger e da narrativa de O’Bannon, e é disto que falarei a seguir.
O Criador dos Ruídos
Se você sentiu arrepios quando a equipe da Nostromo encontrou, na nave arruinada, os milhares de ovos de alienígenas, ou quando o xenomorfo fez sua primeira aparição no compartimento de carga, enquanto Brett sussurrava “gatinho, gatinho” à procura da mascote, agradeça a Jerry Goldsmith. Ele foi responsável pela trilha de grandes sucessos como Planet of Apes (1968), Gremlins (1984) e The Mummy (1999). Anteriormente, o compositor trabalhou (entre 1950 e 1960) para a CBS americana como compositor e maestro, fazendo música para famosas séries de tv como Playhouse 90, Climax! e Twilight Zone. Goldsmith acumula diversos prêmios por sua música, e para nossa sorte (sorte?), ele é a mente por trás do score de Alien.
Mas o que torna essa trilha sonora tão especial?
A resposta é um pouco mais complicada do que parece. Estamos acostumados a trilhas de horror cheias de violinos gritantes, sons agudos e ríspidos, aumentos repentinos na intensidade dos ruídos que causam sustos (muito utilizado nos jump scare) ou massas amorfas de sons irritantes entrando em nossos ouvidos e instaurando um caos que nos retira da zona de repouso. Mas e quando esses elementos, tão comuns às trilhas de horror, não são utilizados com frequência? O que acontece quando um compositor opta pela beleza estranha do atonalismo (diz-se da música sem uma tonalidade definida, excluindo a ideia de repouso e equilíbrio), e a manipula para o efeito final do horror?
Ouvindo o Main Title [7] poderão ter uma ideia mais clara do que falo. Goldsmith cria uma base de cordas (violinos e violas), sopros e metais (flautas, trompetes etc.) que nos introduz em um mundo aparentemente suspenso, vazio… o espaço sideral, escuro, frio e desconhecido. Logo entram os violoncelos e o baixo com uma linha que, continuada pelos violinos até um registro mais agudo, apresenta-nos um elemento que evoca o mistério, tudo isso dentro da mais aparente mansidão. É somente quando o trompete entra, solando, que se ouve, de fato, um tema. E este tema causa-nos uma sensação de estranhamento, típica da música atonal. Ali, Goldsmith, sem muito exagero, sem muitos recursos, diz-nos algo, “No espaço só há treva”. Mas será?
Em The Landing [8], o mesmo recurso da base suspensa e do jogo de inserções de solos com melodias estranhas é utilizado, mas agora mais violento e incisivo; a Nostromo acaba de chegar ao planetoide. The Eggs [9] é uma das peças mais curiosas da trilha sonora. Goldsmith usa um efeito de reverb em um ruído aparentemente mecânico, mas que, por sua regularidade exata, deixa bem claro que os sons repetidos são a pulsação da vida adormecida dentro dos ovos. Essa pulsação cardíaca é interrompida em 1:07, quando os violinos abrem espaço para a descoberta que vai mudar o curso daquela viagem. Em Sleepy Alien [10] , Goldsmith cria um burst repentino de trompas e trombones que soam ameaçadores, enquanto as cordas repetem um mesmo movimento ondulante e incisivo, passando a ideia da implacável aproximação de algum perigo.
O End Title [11] resume a terrível narrativa e, pasmem, apesar de todas as baixas, apesar de Ripley ter sido a única sobrevivente (junto do gatinho, claro), Goldsmith optou por finalizar triunfal a sua trilha, com uma bela melodia wagneriana, quase romântica, cheia de uma doçura incomum de ser encontrada em trilhas do gênero. Essa estranha beleza final, contudo, traz consigo um gancho, ou melhor, deixa em aberto uma questão: teria ali terminado o martírio de Ripley?
Sobre as não-convencionalidades da trilha de Goldsmith, podemos dizer que elas se encontram também na beleza de peças como Hypersleep, To sleep e a própria End title, peças que, mesmo atonais, conseguem quebrar o clima denso e frio das demais peças, estas compostas, é claro, para criar terrenos de tensão pura, ou rompantes deliberados de agressividade. Essa dicotomia efetiva de Belo e Violento, unida à orquestração ousada do compositor (há o uso de instrumentos étnicos; o serpentão renascentista, o shanka, de origem tibetana, e o digderidoo, um instrumento aborígene australiano), criam uma atmosfera perfeitamente equilibrada, que não permite o ouvinte descansar sua audição um segundo sequer, seja diante do encanto, seja diante do medo.
Por que o Mausoléu recomenda?
Faz parte do ser humano guardar para si memórias afetivas e traumas ao longo da vida, é o que nos torna quem somos, o que nos molda, no fim de tudo. Mas este colunista que vos escreve não teria a capacidade de calcular em qual desses planos (o da afetividade ou do trauma) a experiência de ter assistido Alien: O oitavo passageiro aos seis anos de idade — ainda em VHS — se encaixa. Recordo-me que era uma das fitas de nossa coleção a qual nem eu nem meu irmãozinho poderíamos assistir. Nós mexíamos naquela seção reservada aos filmes violentos — claro, crianças… — e diante daquele mar de jaquetas de papelão com títulos assustadores para pessoinhas de nossa idade, como “Renascido do inferno”, “A noite do demônio”, sempre apelativas com suas amostras grátis de horrores gráficos já nas capas, uma jaqueta dessas me chamou atenção, não pelo terror que me inspirava, pois insinuação de terror alguma havia ali, mas pela sensação sublime que me passou a simples, porém misteriosa, imagem de um ovo rachado em sua base, de onde irradiava uma luz esverdeada, hipnotizante, quase sobrenatural. E o título… o título! Tão simples quanto o resto: ALIEN.
Eu poderia evocar aqui o espírito do filósofo Edmund Burke e sua teoria sobre o sublime e o belo, que tanto cabe a uma explicação mais teórica sobre o sentimento de contemplação e admiração que o misterioso e o horrível nos causam, mas isso seria o mesmo que plastificar um sentimento que, para mim, foi o mais orgânico de todos os horrores que uma obra de arte cinematográfica já me passou.
[1]Recomendo fortemente o documentário Jodorowky’s Dune, no qual poderão, inclusive, encontrar as fontes para algumas das informações aqui apresentadas sobre a produção de Alien: o oitavo passageiro. [2]Em Beautiful Monsters: The Unofficial and Unauthorised Guide to the Alien and Predator Films, de David McIntee, pág. 19 [3]Falo dos filmes The thing from another World (1951), Forbidden Planet (1956) e Planet of the Vampires (1965). Recomendo, especialmente, o último, do gênio Mario Bava [4] Nostromo é um romance, de 1904, do escritor inglês de origem polonesa Joseph Conrad. Suspeito que seja uma corruptela do italiano “Nostro uomo”, literalmente, “Nosso homem.” [5]Tenho a boba teoria que Ridley Scott talvez tenha sugerido esse nome como uma brincadeira/corruptela de seu próprio nome, mas carece de fontes.
[6]Em uma tradução livre: “Aquele cujas formas aparentam ser de outro planeta/lugar”.