RÉquiem Para O Corvo

RÉQUIEM PARA O CORVO

Se tem uma HQ que sempre gostei, mesmo antes de ter lido (estranho dizer isso, né) é a cultuada obra de James O’Barr, O Corvo, mas isso não é à toa. Conheci o quadrinho pela adaptação homônima, dirigida por Alex Proyas em 1994, e que tinha a estrela em ascensão Brandon Lee no papel do protagonista, que, por infelicidade do destino, faleceu durante as gravações do longa-metragem. De uma forma meio perversa, a tragédia gerou parte da fama e do interesse pelo filme e, por conseguinte, pelo quadrinho, ou vice-versa. Contudo, o que poucos sabem é que há muitas diferenças entre ambos, apesar de partirem do mesmo mote: seguido por um corvo, um homem regressa à vida para vingar seu assassinato e o de sua noiva, ocorrido na Noite do Demônio, véspera do Halloween, em uma violenta cidade dos EUA.

A obra surge numa época em que as HQs alternativas começavam a ganhar espaço, a partir da década de 1980, anos depois das gigantes empresas do ramo, também pelo barateamento dos custos de impressão, e uma leva de leitores que não tinha interesse nas aventuras de super-heróis (confesso que também leio pouco ou quase nada do gênero). E foi nesse contexto que James O’Barr lançou em 1989, pela Caliber Comics, sua obra seminal . Demorou muito tempo até que conseguisse publicar a edição definitiva, sem os cortes que se deram ou por motivos técnicos, ou por fatores emocionais, uma vez que se remoía pela culpa do que dera origem ao projeto. Por anos, o autor renegava em dizer a verdade sobre a inspiração para criar a obra, até que finalmente foi descoberto que a HQ vinha de seu próprio processo de luto, em que tentava dar rumos à própria vida após ter presenciado o vazio, causado pela morte de sua namorada. Trágica ironia.

Na obra original, Eric Draven não possui fraquezas, é uma figura invencível que está disposta a tudo para saciar sua vingança — no cinema, a ave que o acompanha é seu ponto fraco, mas no quadrinho funciona como uma espécie de metáfora —, e mata todos os membros da gangue envolvidos no estupro e assassinato de sua amada noiva Shelley. Ninguém escapa.

É uma obra extremamente violenta, com cenas explícitas e, não sendo leitura fácil, é compreensível que haja quem opte por fazê-la em etapas. Mas não é só isso, pelo contrário, é uma história de amor no sentido literal da palavra, na qual seu protagonista não é um indivíduo que busca a violência a todo custo por ela mesma, e sim, no fundo, tenta encontrar o alívio da dor causada pelo remorso e pela culpa de algo que estava acima de sua alçada. O próprio James O’Barr deixa clara a mensagem de autoperdão em toda a narrativa. Outro ponto marcante são as inúmeras influências presentes na obra, desde o cinema noir, música post-punk e gótica, feita por bandas como The Cure ou Joy Division, do teatro de Artaud à poesia de Rimbaud, Verlaine e Baudelaire, e pela filosofia de Battaile. Todos esses elementos enriqueceram a obra que, curiosamente, ficou conhecida a partir de seu belíssimo filme, hoje considerado um cult movie.

É bom lembrar que O Corvo é um marco na indústria dos quadrinhos alternativos (pode ter certeza, sem ela, muitas outras HQs independentes não teriam surgido), não só pela força de seu personagem-título, seus dramas, seu caráter de catarse, sua melancolia, como também pela destruição dos clichês maniqueístas de herói e de justiça da época, trazendo em sua essência simplesmente um drama humano.

P.S: O CORVO – EDIÇÃO DEFINITIVA (DARKSIDE BOOKS, 2018) reúne a história original sem cortes, com artes conceituais feitas por James O’Barr. Além disso, outras histórias que envolvem a mítica ave foram publicadas no Brasil: O Corvo: Tempo Morto, de John Wagner e Alex Maleev, e Mythos: A vingança em corpo de mulher, publicados pela Mythos Editora em 1998 e 1999, respectivamente. Outras permanecem inéditas, mas a trágica história de Eric Draven realmente é a mais conhecida e a melhor de todas.

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