Qual narrador de RPG nunca assistiu a um filme ou a uma série empolgante e pensou: ”Quero muito colocar isso na mesa!”? Eu, pelo menos, faço isso com uma frequência alarmante: viro e reviro o que vi e projeto como seria um jogo usando todas aquelas ideias maneiras; algo tão frequente que projeto muito mais do que realmente consigo jogar.
O problema é que muitas vezes essa adaptação gera experiências frustrantes, seja para o narrador, seja para os jogadores, e o motivo é simples: as obras audiovisuais são mídias com inúmeras diferenças em relação ao RPG e, por isso, precisam de uma conversão cuidadosa para alcançar uma experiência gratificante na mesa de jogo.Mas, como dizia Jack, o Estripador, vamos por partes.
Em primeiro lugar, claro, vamos escolher uma série ou filme para converter. Essa semana será Lovecraft Country por dois motivos: primeiro, é uma série em alta produzida e transmitida pela HBO (no Brasil você pode ver tanto em pacotes de TV por assinatura, quanto pelo serviço de streaming HBO GO); segundo, acho que o gênero horror pulp é maravilhoso para criar histórias empolgantes e assustadoras na mesa de RPG.
Como eu disse lá em cima, precisamos identificar os elementos típicos do audiovisual que não fazem sentido no RPG e começar por aí nossa conversão. Nesse espectro de análise, há todos aqueles recursos que usam sons e imagens para criar a atmosfera que propicie a sensação tensa dentro da história: jump scares, filtros de imagem, cortes e montagens em ritmos frenéticos ou quase imóveis. Nada disso faz sentido na mesa de RPG, pois seus jogadores dependem unicamente da sua descrição da cena, e da própria fantasia, para criar o clima propício.
Além disso, a outra coisa que não pode ser levada para a mesa é a linearidade e a pré-destinação da história: ao jogar RPG, você e seus amigos começam a construir uma história coletiva e de maneira compartilhada que, apesar de poder ter marcos e objetivos definidos de antemão, idealmente não conduz os jogadores em uma linha pré-determinada de consequências e acontecimentos.
Identificados os dois grandes pontos divergentes entre a tela e a mesa, vamos ver como podemos converter a experiência e chegar a um jogo maravilhoso de terrível.
Sobre os recursos visuais e sonoros, não tem muito o que fazer. Se tentar criar um jump scare, é quase certeza de que vai se frustrar. A atmosfera a ser criada vai depender basicamente de duas coisas: ritmo e detalhamento da narrativa, junto a um pouco de sensação de impotência diante do terror (aqui menos, pois estamos falando de pulp e não de horror cósmico).
Para um jogo de Lovecraft Country, o ritmo precisa ser cuidadosamente alternado entre momentos de calmaria e monotonia, em que os jogadores, através dos personagens, tentam entender onde se meteram, sentem uma certa claustrofobia ao não saberem direito quando e como vai chegar a próxima onda de acontecimentos arrebatadores e criam laços entre si e com os principais PNJs do seu jogo; e momentos de ação desenfreada, lutas e proximidade com a morte violenta, clássicos das histórias pulp e bem presentes em Lovecraft Country. Equilibrando esses ritmos narrativos, você vai manter os jogadores sentados na ponta da cadeira, sem saber direito o que mais vai ser jogado nas personagens deles no minuto seguinte. O ritmo também pode ser determinado com cortes agressivos de cena, como em um filme de ação, às vezes pulando tempos mortos que deixariam cair a bola e dispersar a atmosfera. Se ligue, não estou falando de momentos narrativamente importantes, mas de coisas como viagens longas de carro, esperas exaustivas por alguma personagem, esse tipo de coisa.
Sobre a narração em sentido estrito — a forma como você vai descrever os cenários em que as personagens se encontram — minha dica é a seguinte: não tenha pressa para terminar descrições de monstros ou locais, tome o tempo necessário para que a imagem mental que você fez deles passe para os jogadores. Descreva cheiros, sensações na pele, nas mãos, temperatura, faça com que a cena se desdobre em 360 graus na cabeça deles. Para complementar a descrição, mostre imagens dos locais, desenhos dos monstros, mas só depois das descrições terem infiltrado a fantasia dos seus jogadores. É importante que a primeira imagem seja criada por eles mesmos, pois isso fará com que vejam os props que você preparou sob sua ótica, acrescentando atmosfera àquilo que, talvez, fosse só um desenho legal na tela do celular.
Uma parte importantíssima de converter uma série ou um filme para um RPG é escolher o jogo certo. A proposta do jogo e do sistema precisam ajudar a criar o clima que você quer, e ajudar a todos na mesa criar a história mais maneira possível. Para Lovecraft Country, eu desaconselho qualquer jogo de horror cósmico, pois, apesar da indubitável inspiração no Mythos, a série não é sobre pessoas que inevitavelmente serão tragadas por seres de poder inimaginável que invadiam seus sonhos e as levavam à loucura, mas sobre pessoas que podem lutar contra esses horrores, mesmo que em desvantagem. Minhas indicações de jogos são, portanto, Fate of Cthulhu (extraído de sua proposta de apocalipse lovecraftiano), “Rastro de Cthulhu” no modo pulp ou Realms of Cthulhu. Infelizmente, parte desses títulos são em Inglês, o que pode dificultar um pouco para quem não está familiarizado com a língua. Minha primeira escolha seria certamente Fate of Cthulhu, com algumas poucas adaptações no tema central proposto, para se adequar ao Lovecraft Country.
Para concluir, precisamos falar sobre uma coisa importante, um elemento que define a obra de Matt Ruff e, consequentemente, a série da HBO: a discussão sobre o racismo. Lovecraft era racista, todo bom leitor dele sabe bem. Lovecraft Country pega esse elemento doente dos escritos lovecraftianos e o transforma, de modo a denunciar os abusos que os negros sofriam (e sofrem) nos Estados Unidos (bom, no mundo, né?). Não sou negro, não tenho ideia do que significa passar por tudo que negros passam no dia a dia, mas tenho empatia suficiente para achar um absurdo.
Você pode jogar Lovecraft Country só pelo seu cenário sobrenatural, claro, mas seria uma pena não aproveitar a discussão da obra para melhorarmos como pessoas. Se for incluir racismo em seu jogo, não o faça de forma banal. Racistas na ficção precisam ser vilões, pessoas ruins que fazem coisas ruins e que precisam ser paradas. Racismo tem que ser característica do inimigo, e não uma muleta para que os jogadores façam escapismo doentio na mesa. Antes do jogo, defina os temas sensíveis com seus jogadores e cuide para que todos se sintam confortáveis. Afinal, a mesa realmente quer discutir isso? Inclusive, esse é o tema do nosso próximo encontro!