Damien

Três Estações

No porta-retrato, uma foto dele bonito, tirada pelo parceiro deitado na areia, com um céu azul aberto ao fundo, ressaltando sua imponência e estatura. Ao deter o olhar por algum tempo, tinha-se a impressão de se tratar dessas fotos que acompanham o objeto. Contudo, ele vivera naquela casa e estava morto, posicionado no aparador abaixo de um espelho na sala de jantar, acompanhado de outros finados: Jorge, o cachorro maltês cujo pelo nunca permanecia branco, os pais, numa elegante foto de casamento e, agora, Fernando, o marido, que conhecera ainda no colegial, pouco antes do retrato emoldurado ser tirado, em uma das primeiras viagens que fizeram juntos à praia.

            Era difícil para Matias aceitar o que acontecera, assim como a morte de Jorge. Vira o cão definhar com uma pneumonia que surgiu sem mais nem menos, deixando-o amuado sob a cama; aos poucos sua vontade de comer cessou, seu corpo se retorcia involuntariamente e lutava a cada inspiração, até, finalmente, parar de funcionar. Para ele foi isso: o bichinho simplesmente parou de funcionar, e ele esteve ao seu lado durante todo o lento e doloroso processo. Com o marido não foi diferente, parou de funcionar. Infarto fulminante, disseram. “Pelo menos ele não sofreu”, vozes sem rosto completaram para tentar confortá-lo, enquanto tomava conta de trâmites automáticos e desprovidos de sentido, como escolher o traje do finado, assinar despachos do corpo e receber cumprimentos de conhecidos e desconhecidos.

            Sentado na beirada da cama, olhando para as camisas de Fernando no armário aberto, Matias recordava que as pessoas mal sabiam que tudo ocorrera ali, no quarto do casal, enquanto ele dormia profundamente, após se incomodar toda noite com o fato de o marido ser espaçoso e ocupar quase dois terços da cama. Naquela fatídica noite não houve incômodo. Também não sabiam do horror que foi acordar tentando aconchegar-se ao esposo gelado e, ao abrir completamente os olhos, mirar os de Fernando vidrados no teto, a boca entreaberta e uma mosca a caminhar sobre seus lábios roxeados. Para Matias, não havia nada de tranquilo ou sem sofrimento: imaginava o marido numa batalha invisível pela vida, como Jorge. Batalha da qual ele não foi capaz de participar. “Mais do que a guerra, importa quem está na trincheira conosco”, dizia Fernando frente às adversidades da vida. Matias esteve na trincheira, dormindo, e agora estava só, o marido, uma lembrança na galeria de mortos no aparador da sala de jantar.

            Vagava pela casa, da sala à suíte, da suíte para o quarto convertido em escritório, dali para a cozinha. Observava os vazios em busca de algo que os preenchesse, sobretudo onde divisava a silhueta de Fernando. Sentia um grande buraco no corpo, cavado com as mãos, como aqueles deixados pelo marido para construir uma horta. “Precisamos nos alimentar de mais orgânicos”, ele dizia. Mas agora os buracos no jardim não estavam preenchidos, tampouco crescia vida em seu interior e à sua volta. Eram apenas buracos, espaços sem conteúdo, sombras de um futuro planejado que não se concretizaria. Durante as noites daquele doloroso outono, o silêncio era rompido aqui e ali apenas por um ladrar distante de algum cachorro da rua. Dentro de casa conseguia ouvir a própria respiração, as batidas aceleradas do coração ansioso. Nessas horas, como aprendera com o companheiro, colocava a mão sobre o diafragma, contava inspirações e expirações até se acalmar e sentir as lágrimas subirem, bombeadas de um poço profundo, e jorrarem sem parar. Era vencido pelo cansaço e se entregava a um sono que só era interrompido por sonhos ou a sensação de que Fernando retornava tarde para casa. Quando isso acontecia, sentava-se na cama, entorpecido, os braços caídos ao lado do corpo, como se estivessem dormentes, sem forças para inclinar-se e deixar-se cair sobre o leito. Os pés tocavam um chão gelado e úmido, então reconhecia: ninguém viria, nada viria.

            Foi numa dessas noites outonais que teve o primeiro de uma série de sonhos vívidos envolvendo o bicho e que o deixaram com uma leve dor de cabeça após acordar. Não estava resfriado e não conseguia se recordar do que havia comido no dia anterior — se havia comido, se havia se hidratado —, logo, não era capaz de apontar com certeza a causa da dor. Os dias eram um largo borrão suspenso no tempo, e aquela dor, embora fraca, era constante e o incomodava, sempre presente após a estranha visita que aquele inseto fazia ao seu inconsciente. Apesar do estranhamento, Matias repetia sempre as mesmas ações: ia até o banheiro, engolia um comprimido junto com um pouco de água da torneira, retornava ao quarto em seguida e voltava a dormir.

            Embora essa sensação desagradável prevalecesse, ela foi, paulatinamente, transformando-se numa comichão e, às vezes, vinha acompanhada de um leve zunido, como se algo rastejasse dentro de sua cabeça. Descrevera o ocorrido à amiga Lucinha, que o acordava semanalmente (ao que parecia ser o mesmo dia, não conseguia identificá-lo exatamente). “Para que não entre em depressão, é importante ter rotina”, dizia a amiga, despertando-o para um café e algumas horas de conversas e distrações. Sentados à mesa da cozinha, após alguns minutos de silêncio nada constrangedores entre amigos que se conhecem há tanto tempo, Matias confidenciou à amiga:

            ― Tem algo na minha cabeça, Lucinha. Parece um bicho, às vezes eu sonho com ele. É como uma lagarta, marrom, com uns anéis vermelhos e também umas bolinhas vermelhas, de onde saem uns tufos de pelo. Antes eu só sentia de noite, agora sinto durante o dia também.

            ― Onde você sente esse desconforto?

            ― Às vezes é aqui ― e apontou com o indicador para o meio da testa ―, mas no decorrer do dia vai mudando, como se andasse até aqui ― e indicou atrás do lóbulo da orelha direita. ― Outro dia enfiei o cotonete na orelha e fiquei mexendo, pra ver se quebrava esse bicho e arrancava seus pedacinhos. ― E soltou um risinho nervoso.

            ― Você não acha que é o caso de procurar um médico, Matias? Você não anda com uma aparência muito boa…

            ― Ah, Lucinha, e o que eles vão fazer? Uns exames, passar remédio, dizer que eu não tenho nada. Todo check-up que eu faço é isso: não tem nada. Fernando também não tinha nada e… ― engoliu em seco.

            ― Ainda assim, acho que pode ajudar. Você está passando por um período difícil, precisa…

            ― Em alguns sonhos tem um, grande, que me toma inteiro, de dentro pra fora ― interrompeu Matias. ― Em outros, tem vários, no meu rosto, na minha cabeça. Você já cortou berinjela bichada, Lucinha? É assim que eu me vejo no sonho, a cara toda marrom, aquele monte de bicho.

            Lucinha era bem-intencionada em suas visitas, mas Matias adivinhava o que a amiga não dizia: precisava de um psiquiatra, de um psicólogo, de tratamento para uma mente perturbada. Ofereceu-se para acompanhá-lo, ao que Matias agradeceu e disse que certamente procuraria ajuda profissional. Acompanhou-a até o portão quando estava de saída e, ao retornar para a sala, foi acometido por lembranças de Fernando ao percorrer o olhar pela sala de jantar e mirar seus porta-retratos. Sentia as entranhas contorcerem-se, como um balão manipulado por um palhaço, em busca de alguma forma, até estourar e deixar um imenso furo irregular, uma cova oca que dificultava o rearranjo de seu interior e a acomodação em si novamente. Essa fenda que abria dentro de si fazia tudo desmoronar, formava um nó na garganta, tornava os movimentos penosos, até mesmo esfregar a cabeça que coçava, limitando-o a alcançar o sofá e lá prostrar-se. Tirou um cochilo que foi interrompido pelo leve roçar do que pareciam ser cerdas suaves de uma escovinha, abaixo da orelha. Abriu os olhos e ali estava: o inseto de seus sonhos, encarando-o. Teria se arrastado para fora de sua cabeça?

            Levantou-se de um salto e encarou aquela lagarta. Algo mantinha seu olhar preso ao invertebrado e o impedia de se aproximar dele — seja para jogá-lo no jardim ou para matá-lo com um chinelo. Tinha a impressão de que os anéis vermelhos do corpo segmentado e as bases das cerdas pulsavam, mais rubros, conforme sua própria frequência cardíaca aumentava. Apesar do susto inicial, encará-la tinha um efeito calmante: aos poucos o coração voltava ao ritmo natural e, estranhamente, não havia medo, mas um relaxamento e a substituição do vazio de outrora por um novo sentimento, ainda não identificado. Via-se no pequeno ser à sua frente, pequeno e indefeso, sozinho e sereno, seguindo uma lei indecifrável que o impelia a continuar vivendo.

            Durante aquele inverno, Matias deixou de lutar contra aquela melancolia que sorrateiramente se embrenhava em seu interior tentando incapacitá-lo. Quando a tristeza se tornava insuportável e explodia em seu rosto em momentos inesperados — à pia da cozinha, no banho, regando as plantas —, ele se dava conta de que a lagarta estava à espreita e, ao encará-la, sentia novamente os batimentos sincronizarem com suas pulsações escarlates e retornava a seus afazeres. Não contou à amiga sobre esses eventos, temendo que ela não o entendesse. Disse apenas que não sentia mais desconfortos na cabeça, que dormia bem, que os sonhos que o despertavam haviam cessado e que estava se recuperando, apesar de sentir uma imensa saudade de Fernando.

            Um dia, sem se dar conta, abriu a porta do armário para pegar uma camisa e se deparou com as coisas do companheiro. Abrira instintivamente essa porta para encontrar ali sua visitante misteriosa e, como a natureza segue seus desígnios independentemente dos infortúnios humanos, ela estava transmutada em uma crisálida, grande o suficiente para ocupar um largo espaço no interior daquele móvel. Antes que fosse tomado pela tristeza da lembrança de seu parceiro ou pelo assombro daquele ser, um brilho dourado na superfície daquele objeto reteve sua atenção. O casulo reluzia, ora dourado, ora colorido, com cores que ondulavam perante seus olhos, como uma grande mancha de óleo sobre a água. Olhava-o com curiosidade e ternura, lembrando-se de que, desde o surgimento daquele animal, sua angústia fora tomada, e um canto da casa, antes ocupado por memórias que o entristeciam, agora estava tomado pelo que parecia ser vida.

            Cada vez que se sentia desalentado, afligido ou desgostoso com a própria existência, percebia uma palpitação diferente no peito, relembrando daquele ser que agora estava protegido no quarto. A cada novo batimento, uma memória de Fernando ressurgia. A saudade imperava, entre lembranças. Revisitou o dia em que tiraram a foto no porta-retratos, a adoção de Jorge, o finado marido trabalhando no jardim e na futura horta, à qual Matias intencionava dar continuidade. Lembrou-se de discussões e brigas, mas da paixão que se seguia, e fazia tudo ficar bem novamente, de como conseguiam conversar e resolver as desavenças sem que precisassem concordar com tudo. Ao se recordar da história que escreveram juntos por tantos anos, novas lágrimas irromperam de seus olhos, com um significado diferente. Compreendia o sentimento desconhecido de outrora.

            A eclosão daquele casulo aconteceu numa manhã de primavera. As cores se agitavam sobre a superfície enquanto Matias o observava. Uma pequena rachadura e, de dentro dela, algo se debatendo e rastejando para fora. Dedos, ou sombra de dedos, que alargavam o corte e abriam aquela casca como um saco de dormir. De dentro, emergia uma figura com formato humanoide, porém sem nenhum traço que o diferenciasse de uma grande sombra. No imenso negrume, Matias conseguia distinguir pontos luminosos, como se as estrelas, galáxias e todo o universo residissem em seu interior e o compusessem. Matias sorriu-lhe e deu-lhe um longo abraço.

Meu carrinho
Seu carrinho está vazio.

Parece que você ainda não fez uma escolha.