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O sorriso

Não que eu queira pisar no legado de Machado de Assis, mas dedicar minhas últimas memórias ao verme que corrói minha mente me parece algo bem idiota de se fazer. Talvez eu simplesmente não tenha o humor mórbido de Brás Cubas, ou a visão crítica do seu criador, mas eu tenho o realismo de saber que o mundo como eu conheci já acabou.

Mesmo agora, enquanto ainda tenho consciência das minhas funções cerebrais, sinto as suas pequenas patas imundas correndo pelo meu cérebro. O barulho incessante de passos que atordoam minha mente, garras minúsculas cavando cada vez mais profundo, alojando-se em minha cabeça. Uma cacofonia de vozes que não pronunciam uma única palavra, mas que inundam meu pensamento com imagens e sensações. Fome, dor, fome… Controle.

No começo, todos pensaram que não era nada, um grande exagero. Lembro da noite em que vi a coisa em ação pela primeira vez, tinha acabado de chegar em casa do trabalho e estava estressado. O trânsito em São Paulo costuma ser caótico em condições normais, mas a chuva tinha deixado tudo dez vezes pior. Minha esposa, falecida esposa agora, tinha acabado de engravidar, então eu estava terminantemente proibido de fumar dentro do carro, e fumar em casa também estava fora de questão.

Deixei o carro na garagem e fui para a calçada. Abriguei-me debaixo de um alpendre e lutei contra a insistência do isqueiro molhado até conseguir acender o bendito cigarro. A rua estava praticamente deserta, exceto por um morador de rua que andava de um lado para o outro à distância. Cada gota de chuva era congelante, e o vento me causava calafrios, mas o homem não parecia se importar. Aos poucos, ele começou a se aproximar de mim, andando lentamente, o rosto oculto pela sombra que o moletom puído causava.

Mesmo meu bairro não sendo dos mais seguros, eu sabia exatamente o que ele queria. “Ô chefia, será que você não tem outro cigarro?” Era exatamente o que ele diria quando chegasse perto o suficiente. E quer saber? Eu daria, o cara já estava morando na rua, na chuva, não ia negar a ele o prazer de uma tragada. O homem aproximou-se mais, o suficiente para que eu visse seu rosto velho e com a barba desgrenhada. Um sorriso doentio distorcia sua face. Não só porque o velho tinha apenas meia dúzia de dentes amarelados na boca, mas sim pela forma forçada como ele entortava a sua feição.

— Olha só, cara. Toma o cigarro e vai logo embora — falei de forma ríspida, aquela cara deformada estava me dando arrepios.

O velho apenas continuou me olhando, estático. Seus olhos vazios pareciam querer me falar alguma coisa. Mesmo que a boca sorrisse, todo o resto do seu rosto parecia estar morto. Apaguei o cigarro na parede e joguei a bituca no meio-fio, queria sair dali imediatamente, não queria passar mais um segundo perto daquele maluco maldito. Parte de mim achou que o velho ia me seguir, mas ele ficou lá parado, ainda olhando para mim.

Subi as escadas até meu apartamento depressa, estava tão distraído pensando no sorriso, que até desci no andar errado. Quando abri a porta de casa, minha mulher, Ana, estava adormecida no sofá com o controle da televisão na mão. Ela cochilava enquanto o apresentador falava em tom sério acerca de uma nova droga que tinha chegado no Brasil. “A DROGA DO SORRISO”, a manchete — escrita em letras garrafais — passava em loop pela tela enquanto a imagem de um palhaço sorrindo ilustrava o telejornal. Peguei o controle das mãos da minha esposa, que se mexeu apenas um pouco, e aumentei o volume da televisão.

— É a sexta pessoa que as autoridades levam ao hospital por suspeita de estar utilizando essa nova droga. A Organização Mundial da Saúde informou que se trata de uma nova forma de anfetamina, e que a situação, apesar de grave, está controlada — o repórter falou com seriedade. — A polícia recomenda que, mesmo os usuários não demonstrando nenhum comportamento agressivo, as pessoas mantenham distância e contatem as autoridades locais.

— Controlada uma ova — resmunguei indo até a janela. Lá embaixo, na rua, o velho ainda estava parado, olhando para o mesmo lugar onde eu estivera minutos antes.

Ana se mexeu de novo no sofá, tateando em busca do controle, como sempre fazia quando estava dormindo e incomodada com o som. Desliguei a televisão e a peguei no colo. Deixei-a na cama, dei-lhe um beijo de boa noite e voltei para a sala para trancar as portas. Arrisquei uma última olhada pela janela; o homem não estava mais lá.

Dois meses se passaram depois daquela noite, e a situação parecia ir de mal a pior. A droga do sorriso, ou Pó do Coringa, como começaram a chamar, passou a devastar vidas. Todos os dias dezenas de pessoas apareciam nas ruas com os rostos distorcidos em sorrisos, e quanto mais a polícia se esforçava para descobrir a origem da droga, mais ela se frustrava. Não havia sinal nenhum de traficante, ou ao menos de entorpecente apreendido. E enquanto os políticos gritavam em Brasília, cobrando medidas drásticas contra a suposta droga, até mesmo o mais imbecil entre eles percebia que talvez não existisse droga alguma.

***

Três meses depois, o mundo já tinha ido para o caralho. O Pó do Coringa começou a ser chamado de Doença do Coringa. Ninguém mais falava em droga, todos sabiam que era uma doença ou uma punição divina. A população fez o que ela sabe fazer de melhor, dividiu-se e começou a procurar culpados por toda parte. Nada melhor do que o caos para atiçar a crueldade humana.

Eu já não ia mais para meu emprego, meu antigo chefe já tinha adoecido e era bem provável que estivesse até hoje na sala dele, com o sorriso deformado no rosto. Minha esposa, grávida, lutava para não deixar aquilo tudo afetar o bebê, mas uma gravidez já é complicada, em um cenário como aquele que estávamos vivendo, então, era pedir demais que ela mantivesse a sanidade.

Naquela noite, arrisquei sair de casa para pegar comida e comprar remédio, pois minha esposa se queixava de uma coceira dentro da cabeça. Os mercados, os poucos que ainda estavam abertos, cobravam uma fortuna. Tinha virado algo comum dirigir com muita atenção, a quantidade de doentes nas ruas estava aumentando em proporções absurdas, era raro o dia em que uma ou duas pessoas não morriam atropeladas, com aquele maldito sorriso no rosto. Estacionei na garagem e subi as escadas com as compras, a porta estava aberta.

Sentada na sala, olhando para a televisão, como eu a vi fazer dezenas de vezes, estava minha esposa… Com um enorme sorriso deformando seu belo rosto.

Não quero, e nem vou escrever aqui, a dor que senti. Apenas direi que cuidei dela até o fim. E este foi o problema, o fim. A doença, apesar de roubar a sanidade da pessoa e transformá-la em uma máscara deformada, não faz mais nada. A pessoa não morre depois de um tempo, na verdade, em três meses não tivemos nem uma única morte confirmada por causa da doença. Os primeiros infectados foram levados para laboratórios de pesquisa e sabe-se lá Deus o que aconteceu com eles. Então cuidei da minha esposa. Eu a alimentava e a limpava, tinha que forçar comida por entre o seu sorriso distorcido e amarrá-la na cama durante a noite para que ela não caísse da escada, e pelos próximos dois meses, ela continuou viva, e meu filho também.

Dois meses depois, aconteceu o que todos sabíamos que ia acontecer. Na verdade, a resposta demorou muito mais do que deveria. O próprio presidente acordou de manhã e andou pelos jardins da residência presidencial com o sorriso distorcido no rosto. O governo se desfez e o caos se instaurou nas ruas. Estava assim em todos os locais do mundo. O único canal de televisão que ainda estava no ar mostrava imagens de Paris queimando, o Japão estava em ruínas e os Estados Unidos tinham sofrido um golpe militar. Todos viviam com medo, ninguém queria perceber que da noite para o dia tinha adoecido. Tudo piorou quando o primeiro morreu.

Foi muito conveniente. Um repórter estava fazendo uma matéria sobre o aumento do número de infectados em uma praça quando um deles, uma mulher de meia-idade vestindo um macacão surrado rosa, simplesmente caiu no chão e começou a convulsionar. A imagem da câmera focou no rosto da pobre coitada na hora que ela vomitou uma massa gosmenta e branca. Milhares de larvas de diversos tamanhos se retorciam no chão.

A gosma começou a vibrar. As larvas maiores começaram a bater os pares pequenos de asas que tinham e a voar, um enxame descontrolado que ia de um lado para o outro. Uma gritaria começou na praça quando outros dois infectados também colapsaram e vomitaram mais larvas. Os enxames se juntaram. A última imagem da câmera ao vivo mostra a hora em que a jornalista é atacada pela nuvem de insetos e fica ajoelhada no chão, o close da câmera consegue pegar o momento em que duas larvas nojentas pousam em sua orelha e rastejam para dentro do seu ouvido.

Aquilo despertou uma reação em cadeia. Metade dos infectados estava colapsando e despejando milhares de novos insetos, enquanto a outra metade deixou de permanecer na letargia e passou a ter um comportamento agitado. Minha esposa foi uma delas, passou a correr dentro de casa, e precisei amarrá-la na cama para evitar que ela pulasse pela janela. Lá embaixo, na rua, o velho morador de rua corria de um lado para o outro, e eu tinha certeza de que ele olhava fixamente para a janela do meu apartamento.

Fiz o que pude. Vedei as portas e as janelas, peguei o máximo de comida que consegui. Nuvens de insetos voavam pelas ruas e batiam em minha janela tentando entrar, procurando uma abertura. Minha esposa passou a gritar o tempo todo, um grito inumano e bestial, era como se ela estivesse chamando algo. Depois de um mês nesta tortura, ela parou de gritar. Seu corpo se contorceu uma vez e sua barriga, que eu acreditava ainda abrigar meu filho, murchou e despejou dezenas de milhares de larvas pelo seu útero. O chão se inundou de massa branca e minha querida Ana se foi.

O zumbido começou, as larvas maiores começaram a bater asas. Não pude fazer nada além de correr, não pude nem me despedir do meu grande amor. Bati a porta atrás de mim e ouvi o baque seco de milhares de insetos raspando na madeira. Estava apenas com a roupa do corpo, a rua estava vazia, exceto por infectados que, agora ativos, se comunicavam perfeitamente com zumbidos e chiados.

Dois dias eu passei correndo e me escondendo, pulando de abrigo para abrigo. Só percebi que estava infectado quando a coceira começou em minha cabeça. Era como se houvesse pequenas formigas andando pelo meu cérebro. Elas se mexiam devagar na maior parte do tempo, mas percebi que, quando estava perto de outra pessoa infectada, elas se agitavam. Por um lado, saber que eu estava condenado me dava um sentimento de liberdade, eu já estava cansado de correr tanto. Mesmo que eu sobrevivesse, de que adiantaria? Minha esposa e filho, mortos, o mundo completamente devastado, o que sobrara para eu viver?

Antes de ontem, consegui ouvir a voz de outro ser humano. Era um pequeno rádio a pilha que tive que lutar muito para fazer funcionar, mas consegui sintonizar na frequência certa. Uma mulher, supostamente uma cientista, falava com muita autoridade sobre o que tinha acontecido na Terra.

Então, era de se esperar que não conseguíssemos lutar contra isso. Um inseto parasita com mentalidade de colônia, organizado para nos infectar e tomar nosso lugar na Terra… Perdemos muito tempo, tempo precioso, tentando descobrir o que era, somos tão estúpidos… Quando minha equipe descobriu a larva na mente dos primeiros pacientes, tentamos de tudo para nos livrar dela. Quando ela resistiu a todos os tratamentos, queríamos ir a público revelar a descoberta, mas o governo não deixou! Mataram meu marido quando ele tentou contar e nos obrigaram a trabalhar em silêncio. Toda minha equipe se contaminou, e um a um os sorrisos foram aparecendo no laboratório. Eu escapei por sorte, e agora sei que essas coisas estão dentro de mim, eu as sinto rastejando na minha mente, me mostrando imagens. Esses insetos têm um objetivo claro: nós representamos duas coisas para eles, um hospedeiro e um lugar para se reproduzir. Da mesma forma que as vespas fazem com as tarântulas, e da mesma forma que o parasita fio de cavalo faz com os insetos, chegou a nossa vez de ser a presa. Não acho que nossa raça verá mais um ano, os humanos não herdarão mais a Terra.”

            Achei isso tudo muito poético. Naquela noite, acordei com um desconforto na cabeça. Sentia pequenos dentinhos perfurando meu cérebro, garras minúsculas escavando e se alojando. Meus sonhos oscilavam entre imagens da minha esposa sorrindo e uma massa vermelha escura que emitia um zumbido. Em um momento, olhei no espelho e vi que o canto da minha boca estava torto, em um sorriso.

            Enfim, hoje eu escrevo estas últimas palavras. Tomo a liberdade de dizer que estas são minhas memórias póstumas, pois mesmo ainda tendo o sopro da vida dentro de mim, tenho consciência de que já morri. O único favor que posso fazer a mim é não deixar meu corpo vagando por aí com milhares de insetos dentro da minha cabeça. Há uma espingarda no armário deste pequeno apartamento onde me escondi, e, enquanto minha boca não se torce em um sorriso, sei que posso colocar o cano da arma em minha garganta.

            O último som que vou ouvir não será o zumbido, nem a cacofonia de vozes na minha cabeça, será um único e simples estouro. E quer saber? Parte de mim quis mesmo sorrir ao imaginar que eu levaria algum destes malditos comigo.

“Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas” – Machado de Assis

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