O título dessa matéria não é mais um daqueles chamarizes típicos de epígrafes de autores de horror ainda verdes, nem uma leiga apropriação de alguma frase solta em um site de “horror literature quotes” que erroneamente categoriza a obra de Dante como tal, não… Leve a relação do compositor romântico com o poeta florentino aqui exposta para o lado mais literal possível. Esse artigo é sobre o encontro assombroso de dois espíritos infernais, um crossover diabólico entre poema e música insólitos.
O Compositor
Franz Liszt, é um compositor austríaco nascido em 1811 e falecido em 1886. Foi também maestro, professor e pianista virtuoso. Autor de várias centenas de peças; entre concertos, canções, sinfonias, foi também criador da forma musical “Poema Sinfônico”, que traduz, utilizando certos recursos como timbres e ritmos, poemas para a linguagem musical. Como pianista, foi um virtuose que atravessou a europa promovendo suas obras em turnês cansativas regadas a muito vinho, noitadas e amantes.
Liszt era um Badboy, ou melhor, um dandy, um anti-herói ao melhor estilo Byroniano, o Don Juan de seu poeta favorito, a julgar pelo número de traduções de poemas de Byron, que o compositor criou ao longo de sua carreira.
A sensação por Liszt e suas mãos enormes (que mediam quase 20 cm da ponta do polegar até a ponta do mindinho) deram origem a uma onda de histeria coletiva chamada de “Lisztomania”. Rapazes e moças brigavam por seus lenços de seda, que como bom performer, ele atirava ao público, jovens compositores e pianistas inspiravam-se em seu virtuosismo e em suas obras, e o mundo, por mais da metade do século XIX, foi assombrado por esse músico faustiano que tinha, na alma, o paraíso, o purgatório e o inferno, juntos, num amálgama sublime e encantador.
Liszt e a Sinfonia Dante
Mesmo se tratando de um poema épico que marcou o ápice da beleza da literatura medieval italiana, é comum que os leitores fãs de horror tenham lido, ou pelo menos conheçam, a obra “A Divina Comédia”. De quadrinhos a animações e videogames, a monumental obra do florentino Dante Alighieri (1265 – 1321) inspirou muitos artistas ao longo das centúrias, e em um momento em que a música e a literatura (talvez mais que em qualquer outra época) eram artes intrinsecamente ligadas, é de se esperar que o poeta florentino tomasse de assalto a mente de algum compositor.
Dezenas de nomes poderiam ser citados aqui, mas o de Franz Liszt é, sem dúvida, o mais notável.
Liszt trabalhava em sua “Sinfonia Dante” desde 1840, enxertando a monumental peça com temas e pequenos trechos, pouco a pouco. Essa sinfonia coral somente foi estrear em Dresden em novembro de 1864, e causou, como qualquer obra do compositor até então, um furor que dominou os públicos.
A peça é dividida em dois movimentos (isso é, duas partes), e dez partes menores, que dividem os temas abordados. Não é interessante para este ensaio que dissequemos um por um, uma vez que somente uma audição da obra como um todo poderá explicar o porquê de essa ser uma obra monumental e emocionante, por se tratar de “música programática”; em poucas palavras, uma peça (não importa sua forma), que aborda uma narrativa, descrevendo por meio dos arranjos, dos sons e ritmos, o que quer dizer o poema/conto/novela que a inspirou. Para citar um exemplo do próprio Liszt, temos o poema sinfônico Childe Harold’s Pilgrimage, inspirado no poema épico de Byron, no qual Liszt explora, fazendo uso dos recursos sinfônicos, toda a história narrada pelo poeta inglês.
Em “Sinfonia Dante”, isso se repete. O diabolismo latente e o espírito furioso de Liszt parecem ter considerado uma terceira parte, obviamente o “paraíso”, um tanto dispensável ou tediosa, portanto, temos somente as partes que podem nos oferecer, mesmo com melodias belas e corais majestosos, o mais puro horror sonoro.
O primeiro movimento, “Inferno”, inicia-se da única maneira que poderia começar: “Os portões do inferno” abrem a sinfonia, apresentando-nos esse plano terrível no qual Dante caminha em busca de sua amada Beatrice, em companhia de Virgílio, o orgulho dos poetas latinos, seu guia e mestre. A seguir, adentramos em “Vestíbulo e Primeiro círculo do inferno”, sendo o vestíbulo o local de preparação dos condenados, que caminham rumo ao seu juiz na eternidade, Minos, que em sua casa da dor decide qual punição receberá o condenado de acordo com seus pecados. O primeiro círculo do inferno é o Limbo, para onde vão as almas pagãs, os natimortos e todos aqueles que não foram batizados ou não acreditaram no deus cristão. Aqui é preciso abrir um pequeno comentário, pois “A Divina Comédia”, apesar do tom grotesco de sua primeira e segunda partes, é obra de um autor essencialmente católico; é comum acreditarem que, por seu teor obscuro e repleto de passagens terríveis, a obra de Dante fora talvez perseguida, mas não, pois ela está repleta do moralismo da filosofia ostentada pela religião católica (nesse caso).
Mais adiante, adentramos o segundo círculo, local de danação para os pervertidos e para aqueles que se permitiram deixar levar pelos prazeres carnais. A escala descendente, que as cordas e as flautas executam, indica-nos essa passagem para um plano mais abaixo. Aqui, Dante e Virgílio encontram-se com as almas de pessoas que cometeram adultério, incesto, estupro, ou abandonaram-se aos prazeres da carne, sem pensar em quaisquer consequências.
Há então um salto para o sétimo círculo, lugar de punição para aqueles cujo pecado maior foi a violência, e é separado em três partes: aqueles que foram violentos com seus semelhantes fervem no rio Flegetonte, um rio de sangue em cujas margens vivem grandes centauros arqueiros, que fulminam com setas ardentes os corpos daqueles que dele tentam sair. Aqueles que cometeram violência contra si mesmos crescem como árvores retorcidas e langorosas, formando o bosque dos suicidas, habitado por harpias que vomitam excrementos e empoleiram-se nos galhos mortos das árvores melancólicas. E, por fim, o lugar reservado àqueles que cometeram violência contra Deus, abandonados em um deserto escuro de areias fervidas, onde um céu somente se vê iluminado pelas inúmeras faíscas e chuvas de fogo que dele caem e queimam a pele dos pecadores.
Finalizando o movimento, Liszt entrega-nos uma recapitulação do primeiro tema, e uma “Coda”, uma extensão, por assim dizer, do último tema.
Chegamos enfim ao purgatório, este movimento dividido em quatro partes menores; há um evidente abrandamento da peça num geral. Dante e Virgílio encontram-se no plano onde as almas penitentes ainda se agarram a um fio de esperança; a chance de salvação é uma promessa distante, mas, ainda assim, uma promessa. Os corais dos suplicantes surgem mais pungentes e brilhantes. É nesse último movimento que conhecemos, através de partes como “Paraíso Terrestre” e “Magnificat” (Um texto musicado típico na música sacra), a majestade da sublime peça de Liszt.
O Paraíso
Termino essa matéria convidando o leitor a embarcar, sem medo, no bote de Caronte, que há de nos levar, diferente do que reza a mitologia acerca do personagem, não para o inferno, mas para um paraíso, onde a audiofilia encontra-se acima de qualquer preconceito que nós, por qualquer “razão” que o tenhamos, nutrimos por esse ou aquele estilo musical.
A música erudita vem sendo vista como um território elitista e, consequentemente, inacessível para as massas. Nem sempre foi assim; houve uma época (e não faz mais que 100 anos!) em que todos conheciam alguma valsa de Shostakovich ou uma ária de ópera. Que isso vá se repetir, este que vos escreve acredita que não… existem tantos estilos para se ouvir (louvada seja a diversidade! Posso morrer tranquilo sabendo que não vou conseguir ouvir de tudo), que não se permitir ao encanto de algo novo é uma atitude — perdoem-me a rispidez — deplorável.
Encerro minha matéria deixando um link para ouvir a obra na íntegra, e proponho um exercício: tentem ler os cantos referidos acima, ouvindo a Sinfonia Dante. Espero que gostem!
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