Você acorda cedo numa manhã de sábado. Veste-se com trajes adequados e sai para as ruas em pleno 1º de novembro, o Dia de Todos os Santos. Toda a cidade está ali, caminhando ao seu lado. Nobres, plebeus, ricos, pobres, fracos, fortes. Todos nas ruas celebrando e rezando.
Você segue o rumo dos fiéis e sente uma brisa fria em seu rosto. Nada de diferente naquela manhã de outono em Lisboa, ou quase nada, pois você percebe um ruído crescente que tomando conta de tudo com uma vibração gradual que, em poucos segundos, faz tremer toda a Europa.
Ninguém à sua volta parece entender o que está acontecendo, alguns tentam correr, outros se agarram ao que tiverem ao alcance das mãos; crianças e adultos gritam, homens e mulheres se desesperam, mas ninguém ouve nada a não ser o terrível barulho que toma conta de tudo e de todos.
À sua esquerda, um novo som ruge, esse mais próximo e concentrado, é um edifício ruindo sobre aqueles que estão ao seu lado. Eles gritam, enquanto pedra após pedra cai sobre seus corpos indefesos. Esse cenário se repete à sua direita, à sua frente e às suas costas, e muito mais por toda a cidade.
Por um milagre, um acaso ou qualquer outra explicação, você consegue correr, desvencilhando-se da multidão que age da mesma forma: histérica e desesperada. Você se afasta de tudo e de todos e, com a graça de Deus, consegue entrar numa grande igreja. Já no corredor principal, com outros fiéis que buscaram abrigo naquela santa construção, você faz o sinal da cruz e empurra uma porta lateral, pensando ter encontrado o abrigo perfeito, protegido.
Mas as pedras, que deveriam te proteger, caem sobre você, esmagando metade do seu corpo. Naquele cômodo não chegou a água, nem o fogo. Mas no resto da cidade, sim.
1º de novembro de 1755
Como citei, era o Dia de Todos os Santos, um sábado tranquilo, não fosse o imenso terremoto que mudou a história de Lisboa. Com cerca de 10 mil edifícios derrubados e entre 15 mil e 50 mil mortos, a tragédia não parou só no sismo que marcou nove pontos na Escala Richter — o máximo da Escala é dez.
Entre debates de geólogos, discute-se a possibilidade de dois abalos sísmicos, sendo um originado no mar e outro na região do Vale do Tejo, o que ainda teria causado um tsunami, com ondas de 30 metros de altura. Ao fim de tudo, a cidade ainda ardia em chamas devido ao desastre.
Por curiosidade, e por pura ficção de minha parte, a primeira parte desse texto traz a visão de uma pessoa que testemunhou essa tragédia in loco e foi encontrada somente em 1990, ou seja, 235 anos depois. Muitos outros sequer foram encontrados e, por anos e anos, a cidade pereceu em ruínas, com cadáveres pelas ruas e vielas, escombros, saqueadores e tudo o mais que estamos acostumados em romances pós-apocalípticos.
Lisboa foi reconstruída sob o comando de Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal.
1755 por Moonspell
Esse é o evento e o cenário que inspirou o álbum 1755 (2017) da banda portuguesa Moonspell.
Liderada por Fernando Ribeiro (vocais), contando com Pedro Paixão Telhada (teclados), Ricardo Amorim (guitarras), Aires Pereira (baixo) e, na época, com Miguel Gaspar na bateria, a banda nos brindou com um disco de alto teor de dramático, mesclando sons mais extremos e gothic metal, num excelente full lenght, bastante intenso, coeso e, sem dúvida, uma das obras mais significativas da história da banda e do metal. E o melhor: cantado inteiramente em português.
Entre as faixas preferidas, destaco a belíssima e pesadíssima — apesar de não ter nem guitarras nem bateria, somente orquestrações dramáticas e vocais altamente performáticos — “Em nome do medo” que abre o disco.
O disco inteiro é uma bela obra que merece ser ouvida e apreciada, mas destaco faixas como “In Tremor Dei” — que ganhou um videoclipe em animação e participação de Paulo Bragança, cantor de fado —, e “Todos os Santos”, ambas com letras e melodias fortíssimas. Já “Desastre” traz o ponto de vista do padre jesuíta Gabriel Malagrida, que acreditava e pregava ter a cidade sucumbido perante a vontade de Deus e por isso não deveria ser reconstruída. Mesmo alcançando o status de santo e profeta — e louco —, o padre italiano, que chegou a viver e pregar no Brasil entre 1721 e 1750, sofreu forte perseguição por parte do Marquês de Pombal, e morreu em 1761 na fogueira.
O disco ainda traz como faixa bônus “Lanterna dos afogados”, da banda brasileira Paralamas do Sucesso, numa versão arrastada e — novamente — dramática.