No mês de agosto, nossa editora Nathalia Sorgon Scotuzzi cedeu uma entrevista para a Folha de S. Paulo a respeito da obra de H. P. Lovecraft. Aqui, você encontra a entrevista na íntegra.
Você sente que há uma presença maciça e crescente da literatura do Lovecraft no mercado editorial brasileiro? Como você pensa essa questão, considerando a quantidade de editoras e publicações lançando contos e novelas do autor quase ao mesmo tempo?
Nossa, e como existe! Há alguns anos, era possível contar nos dedos quantas versões brasileiras da obra de Lovecraft existiam. Neste ponto, as edições da Francisco Alves e da L&PM têm o mérito de terem começado a disseminar o autor no Brasil. Quando comecei a estudar o autor academicamente (a partir de 2013), a coleção da Editora Hedra – sem dúvidas, uma das melhores – estava em seu auge, com novos volumes sendo lançados e enchendo minha prateleira com regularidade. Desde então, pude ver surgirem novas edições, para todos os gostos e estilos, de formatos simples até o luxo. Agora, em 2020, confesso que não consigo mais ter noção de todas que existem! No geral, isso é muito bom. Querendo ou não, o autor ganhou visibilidade e novos leitores, com conteúdos acessíveis para todos. Por outro lado, e inevitavelmente, muitas edições duvidosas acabam surgindo também, edições feitas às pressas, com pouca atenção à tradução e até modificações textuais. Além de publicarem a obra original do autor, tenho visto diversas adaptações para quadrinhos, antologias de histórias inspiradas no universo do Cthulhu Mythos (das quais inclusive eu mesma já participei como autora) e versões para outras mídias. E isso é um fenômeno mundial, não só brasileiro. Há poucos anos, quem poderia adivinhar que em 2020 teríamos uma adaptação bastante fiel de um conto de Lovecraft produzido por Hollywood e estrelado por Nicholas Cage?
A que, na sua opinião, se deve essa popularização intensa e constante de Lovecraft?
No Brasil, especificamente, penso que a entrada da obra do autor em domínio público tenha tido bastante peso. Ficou barato publicar Lovecraft e isso atraiu mais leitores. Além disso, a literatura de terror tem se popularizado mais e mais, em um contexto em que vemos surgir novas editoras dedicadas exclusivamente ao gênero, como a Darkside e a Diário Macabro. Com Lovecraft sendo conhecido e lido, o público começou a descobrir que o autor é uma das grandes influências por detrás de outros escritores que já admiravam, e penso que essa descoberta é bastante prazerosa. Quando paramos para analisar, as ideias de Lovecraft e muitas de suas criações estão por detrás de livros, filmes e jogos que já tivemos contato em algum momento, sem reconhecer essa influência. Stephen King, em alguns de seus textos, a HQ Hellboy, de Mike Mignola, e o jogo Bloodborne são grandes exemplos disso.
Considerando que o autor morreu anônimo, sem sucesso nem dinheiro, e nunca teve sua obra reconhecida em vida, você identifica um ponto na História em que aconteceu essa guinada para Lovecraft se tornar popular e influente?
Bem, eu não vejo exatamente dessa forma. Lovecraft teve sucesso e reconhecimento dentro do que ele mesmo se permitiu. A maior culpa por seu alcance limitado foi dele mesmo, que duvidava de seu talento e de seus textos e escrevia ficção esporadicamente. Enquanto produziu apenas cerca de 70 histórias, Lovecraft escreveu mais de 100 mil cartas. Ele era um autor que se negava a entrar em um ritmo de trabalho comercial e a escrever histórias apenas para serem vendidas. Da mesma forma, ele não se importava com dinheiro e enviava seus textos para serem publicados apenas na medida em que precisava de uns trocados para se sustentar por mais algum tempo. Além de não confiar no que escrevia, Lovecraft com muita resistência adaptava ou moldava sua escrita ao que era pedido por seus editores, limitando ainda mais suas publicações. Algumas de suas obras, por exemplo, só foram publicadas porque seus amigos enviaram a editores sem que ele soubesse. Apesar de tudo isso, de forma alguma Lovecraft morreu anônimo. Ele tinha uma certa rede de leitores e, principalmente, correspondentes do mundo literário, que se inspiravam em sua obra e criações, pessoas como, por exemplo, Robert Bloch, autor do notório Psicose. A morte prematura de Lovecraft, por fim, permitiu que seus amigos e correspondentes mais próximos conseguissem reunir e publicar sua obra de forma definitiva, algo que o autor se negou por toda a sua vida. Foi com esse objetivo que foi fundada a editora Arkham House, por August Derleth e Donald Wandrei, escritores e amigos de Lovecraft. A partir daí sua obra começou a ganhar melhor visibilidade. Durante toda a sua vida, Lovecraft incentivou que seus amigos e outros escritores utilizassem sua mitologia e invenções em seus próprios textos, estendendo sua ideia de que o universo é habitado por muito mais do que o ser humano conhece, e o perigo que acompanha cada nova descoberta. Com o tempo, isso não deixou de ser praticado, estendendo-se a outras mídias e formatos. Nos anos 80, por exemplo, vemos um crescimento da influência de Lovecraft no cinema de horror, com filmes como Evil Dead (Sam Raimi, 1981) e Reanimator (Stuart Gordon, 1985), e com o surgimento do RPG Call of Cthulhu, de 1981. A partir de então, influência do autor só cresceu.
As controvérsias em torno de Lovecraft envolvem xenofobia, racismo e misantropia. No ensaio “Contra o mundo, contra a vida” (recém-publicado no Brasil, apesar de datar de 1991), Michel Houellebecq analisa a ideia de que esses sentimentos negativos foram motor criativo para a melhor produção do autor, produzida depois de sua traumática estada em Nova York. Houellebecq aponta que o ódio racial e xenofóbico e o materialismo exacerbado de Lovecraft teriam sido canalizados para a sua criação literária. O que você pensa disso?
Concordo com Houellebecq no sentido de que o racismo e xenofobia de Lovecraft tenham sido parte de seu motor criativo, mas vejo isso associado a muitos outros elementos. Desde jovem, Lovecraft tinha uma visão muito crua do mundo – em algumas fases, se considerava pessimista, em outras, apenas realista –, despindo seu modo de ver as coisas de qualquer elemento religioso ou supersticioso. Para ele, a humanidade estava jogada a esmo no planeta Terra e em algum momento seria extinta e o ciclo da Natureza seguiria inalterado. Com esse pensamento materialista, Lovecraft acreditava que algo que dava certo sentido à vida eram as tradições, que permitiam que a humanidade se apegasse em algo que lhe desse chão, mesmo tendo consciência de que isso era uma pura construção social. Assim, o autor gostava da tradicionalidade de região onde nascera e vivera pela maior parte de sua vida – a cidade de Providence, capital do estado de Rhode Island – e sinais de mudança no status quo do que conhecia o assustavam e o abalavam. Sua xenofobia vem do fato de que ele era avesso a outras culturas na medida em que uma se misturasse com outra, algo que para ele fazia com que cada uma perdesse suas qualidades mais fortes (o que não deixa de fazer parte do pensamento racista e eugenista da época). A própria cultura norte-americana era rejeitada pelo autor, que gostava de se equiparar a seus antecessores ingleses e os autores britânicos que o influenciaram. Para ele, o modo de vida capitalista com foco no consumo dos Estados Unidos era um fracasso cultural, onde se valorizava a posse e não o conhecimento. Em relação às culturas de outros países que chegavam aos EUA, Lovecraft não só se sentia invadido, mas também tinha medo daquilo que não conhecia – algo que é um dos elementos-chave em sua obra: o medo do desconhecido. É por isso que, em alguns contos, protagonistas que refletem essa ideia do autor descrevem de forma tão pejorativa outros personagens oriundos de outros países e etnias. Dentro desses contos, o medo se maximizava em ódio. Porém, não posso deixar de dizer que, dentro do conjunto da obra de Lovecraft, são apenas alguns contos que apresentam essa nuance racista com mais intensidade, sendo, por exemplo, o conto “O horror em Red Hook” o maior exemplo disso. Acontece que, ao focar tanto na questão do racismo de Lovecraft para falar de sua obra, acabamos nos esquecendo de que a mitologia criada pelo autor transcende isso, de forma que, no desfecho de suas obras, etnias, classes sociais, preconceitos ou qualquer outro elemento ligado especificamente ao humano não tem importância alguma, já que Lovecraft coloca toda a humanidade no mesmo barco ao apresentar ameaças alienígenas que acabariam, se quisessem, com sua soberania em poucos instantes. O cosmicismo trabalhado por Lovecraft – a ideia mais forte que permeia seus contos – é de que a humanidade nada vale em meio à dimensão do cosmos, de que não passamos de seres insignificantes para a Natureza e de que não existe Deus – ou deuses – algum que nos observa e nos protege. Focando nessas ideias, Lovecraft nunca se deu ao trabalho de desenvolver profundamente seus personagens, sejam eles os protagonistas ou antagonistas das histórias, pois o foco de sua obra são as descobertas, o contato com o desconhecido que culmina em algum nível de desgraça à toda a humanidade. Querer focar apenas no racismo dentro da obra de Lovecraft é analisar de forma rasa o que o texto nos apresenta, pois a própria figura do personagem, de forma geral, é um elemento pouco trabalhado e até certo ponto caricato em Lovecraft.
Ainda nessa questão espinhosa: na sua opinião, existe uma forma “adequada”, ou “ideal” que seja, de um leitor contemporâneo lidar com as complexidades e contradições de um autor e de uma obra como a de Lovecraft, sobre o qual tanto se discute a partir desses pontos complicados nesse nosso atual período histórico, em que tanto se busca detectar essas “falhas de caráter” em artistas e criadores de ontem e de hoje?
Penso que ficar batendo incessantemente na tecla do racismo de Lovecraft seja a última moda. Acredito que um leitor deva ter toda a liberdade de ler a obra e apegar-se às questões que mais se identificar, sendo crítico e focando naquilo que preferir. Por exemplo: caso o leitor/pesquisador queira abordar a obra de Lovecraft por um viés sociocultural, discussões sobre racismo e xenofobia serão fundamentais. Agora, caso o foco da leitura seja entreter-se com monstros intergalácticos, histórias alternativas do surgimento do seu humano, viagens a lugares inóspitos e descobertas terríveis, não há obrigação alguma de que o leitor pare, identifique e tenha que refletir especificamente sobre os elementos socioculturais que encontrar na obra. Penso que ninguém é obrigado a nada. Nenhuma editora é obrigada a se explicar a respeito de determinado “defeito” do autor (morto!) que publica. Nenhum tradutor tem obrigação moral de alterar passagens potencialmente ofensivas. Nenhum leitor deve ter seu juízo subestimado, e parece que é isso que acontece. Não temos mais a liberdade de ler determinado texto sem antes escutar: “mas você sabia que ele era racista/machista/fascista?”. O que é lido é a obra, não a vida pessoal do autor. A não ser que sua produção seja um manual de como exterminar uma minoria e outras bizarrices como essa, o que está sendo lido é um trabalho de ficção que pode, OU NÃO, refletir o pensamento do autor. Se formos sempre levar a vida e opinião pessoal de um autor em consideração, nada mais será lido. Pelo menos com autores mortos e de séculos passados, devemos saber separar autor e obra (quanto a casos da atualidade, acredito que a discussão possa ser diferente). O que me interessa, como pesquisadora de Literatura, é a obra que está em minhas mãos, não as escolhas pessoais do autor que a fez. Um texto literário é um material vivo, um material que se transforma de leitor a leitor, e querer sempre enfiar tudo em caixinhas é redutivo e leviano. Existem diversas outras formas de se abordar a obra de Lovecraft, que vão muito além do tema do racismo. Em minha dissertação de mestrado, publicada como livro no ano passado (Relances vertiginosos do desconhecido: a desolação da Ciência em H. P. Lovecraft, Editora Diário Macabro), por exemplo, analisei o papel da Ciência em sua obra, apresentando e refletindo sobre pontos que vão desde os autores materialistas que influenciaram na construção de seu universo racional, até elementos textuais que permitem com que a Ciência seja, a princípio, a base para toda a estabilidade da obra e, ao final, a responsável pela ruína humana. Meu ponto é de que existe uma gama inesgotável de assuntos para se debater em Lovecraft, e o racismo é um elemento bastante pontual e raso em meio a isso tudo.
Um dos seus principais pontos de pesquisa são os Mitos de Cthulhu. Basicamente, qual o grande fascínio que esses Mitos exercem no seu trabalho e também na permanência das referências de Lovecraft por esses anos todos? Você acha que existe algum fenômeno cultural ou outro tipo de criação que tenha paralelos a essa mitologia?
Lovecraft criou uma versão alternativa de nossa realidade dentro de sua obra, e para isso utilizou-se de elementos muito bem pensados, estes que são os responsáveis pelo fascínio que essa antimitologia exerce. Primeiro de tudo, o universo de Lovecraft foi criado de forma extremamente fiel à realidade que conhecemos. Assim, o leitor, desde o início, sentirá um certo tipo de conexão com o protagonista da história, confiando em sua palavra e sua narrativa. Para que essa confiança seja ainda mais forte, Lovecraft inseria em seus contos protagonistas que são cientistas, acadêmicos, pessoas cuja palavra tem poder e seriedade. Acompanhando um personagem assim descrito, em um mundo que em tudo reflete o nosso, demos o primeiro passo para que o horror comece a acontecer: quando o personagem entra em contato ou tem a total certeza de que algo do desconhecido fora descoberta, o mundo que conhecia, todas as suas certezas, começam a ruir. Como estávamos seguindo sua jornada lado a lado, o horror também atinge ao leitor. A pergunta que surge em nossa mente é: não seria possível, de fato, existir uma civilização ancestral enterrada em meio ao gelo antártico? Seria tão discrepante assim se houvesse seres alienígenas habitando de forma escondida montanhas ermas e inabitadas? O mundo que Lovecraft constrói é um mundo que não entra em conflito com o mundo que conhecemos. Sua proposta era a de criar uma realidade que preenchesse lacunas em nossa própria realidade, oferecendo possibilidades monstruosas para o que pode haver nas camadas desconhecidas da Natureza. Ao entrar em contato com essa camada, a humanidade estaria perdida, mas a Natureza ainda seria a mesma. Somado a isso tudo, está o conceito de que Cthulhu, Azathoth, Yog-Sothoth ou qualquer outra entidade criada pelo autor não são deuses, apenas seres mais poderosos que nós, que desconhecem ou pouco se importam com nossa existência. Nos dias de hoje, em que no Brasil temos uma camada muito maior de leitores jovens e adultos que não se sentem tão conectados com religiões tradicionais – ou não as seguem de forma tão inquestionável – os textos de Lovecraft são muito mais apelativos, suas ideias são muito melhor compreendidas e recebidas por leitores de mente aberta e que enxergam o mundo de forma mais parecida com Lovecraft do que os contemporâneos ao autor ou leitores de décadas passadas. É por causa dessas características que gosto de chamar o Cthulhu Mythos de uma antimitologia (termo cunhado pelo pesquisador David E. Schultz), pois, apesar de certos personagens lovecraftianos acreditarem que essas entidades sejam deuses e criarem cultos às suas figuras, ninguém se importa com ninguém nesse universo niilista, e estamos todos fadados a nossos destinos naturais – a morte, o desaparecimento, e a completa e total falta de importância e significado.
Link da matéria da Folha: