A penumbra do quarto escondia o corpo pálido de Clóvis Mácula, encolhido em uma grande cama de casal bagunçada. Seu coração não pulsava, seu sangue não corria, seus pulmões não mexiam, mas ele se movia por não conseguir dormir.
Era fim da tarde, as luzes do sol não penetravam o interior do cômodo, tapumes sobrepostos eram como grandes cães de guarda negros espantando intrusas luzes, cortinas blecaute eram muros reforçados impedindo a invasão de alguma claridade insistente. Levantou da cama e começou a perambular por seus aposentos. A noite seria especial, esperou longos sete anos por esse momento, seu gran finale.
Conheceu Cristina no Tinder (seu Ifood particular), já tinha saído com ela antes. A garota era de última geração, uma dessas pessoas incompetentes para a vida, subservientes das redes, fingiam felicidade dentro da própria neurose, mas continuavam vazias e desorientadas, não saberiam atravessar a rua sem olhar o Waze.
O interfone tocou. Clóvis permitiu a subida de seu novo affair. Abrindo a porta, disse:
— Uau, Cristina! Está mais linda que a própria beleza.
Eu vesti qualquer coisa, já que não vamos sair de sua casa hoje. Não deve ter reparado, usei essa mesma roupa em nosso último encontro, diminuí um pouco minha pegada de carbono.
— O passado é irrelevante, ter presente é luxo e o futuro é sempre incerto. Vamos celebrar o futuro com esperança de que ele ainda exista graças a sua heroica economia de roupa. — A garota riu do comentário de Clóvis, que pegou uma taça e serviu a convidada de vinho, deixando a sua própria vazia.
— Assim tão rápido? Acabei de chegar. — Cristina acomodou-se em uma poltrona segurando sua taça.
— Separei para nós um delicioso vinho orgânico de safra especial. — Clóvis alternava seu olhar entre o copo e os lábios da garota, mas ela não bebia. Cristina viu um queijo perto da mesa e, com uma das sobrancelhas levantadas, questionou:
— E esse queijo? Você não era vegano?
— Queijo de soja, comprei em um lugar novo que abriu. Todos os comentários da internet são ótimos, falaram que é delicioso, parece mesmo queijo comum. — Clóvis cortou e ofereceu um pedaço.
A garota comeu o pedaço e tomou um gole de vinho. Ao beber, os olhos de Clóvis cintilaram. Antes de terminar, as mãos da garota fraquejaram e a taça caiu.
Com seus caninos avantajados, fez um corte no pescoço de Cristina e deixou o sangue cair em sua taça vazia. Ele bebeu uma taça inteira daquele conteúdo. O sabor era mais doce que o de costume, tinha gosto de glória, notas suaves de liberdade e um fundo qualquer de exultação.
Enquanto lambia os dedos com as gotas de sangue, lembrava satisfeito do início de sua saga. Fazia sete anos desde que descobriu o segredo para voltar a ser humano. Bastava se alimentar exatos 2557 dias ou 84 meses de vítimas com alimentação exclusivamente vegana e orgânica. Aquele era o último dia, a última vítima, o fim de sua maldição eterna. Amanhã viveria novamente, sentiria o pulsar em suas veias e correria por campos ensolarados.
Clóvis deu um salto para trás, caindo com as mãos no chão. De olhos arregalados fitou a garota se contorcendo. Ela estava acordada e colocou as mãos no pescoço.
“A dose de sonífero foi muito alta, ela não deveria acordar. Será que o corte no pescoço a acordou?”, pensou o vampiro.
— Esse queijo… tinha… tem… leite… leite de vaca… sou alérgica… precisa me levar ao hospital. — Com dificuldade, Cristina falava enquanto sufocava. Clóvis sentiu a náusea dominar sua mente. Sentou-se no chão e fitou os olhos naquele pedaço de queijo, que o encarou de volta, a desesperança voltou a percorrer seu corpo, os olhos sabiam enxergar o próprio carrasco. Choraria se pudesse, mas constatou que continuaria morto.