Ultimo Trabalho

O ÚLTIMO TRABALHO DE HÉRCULES

As fronteiras que separam a Vida da Morte são, na melhor das hipóteses, obscuras e vagas. Quem dirá onde termina uma e onde começa a outra?

(Edgar Allan Poe, O Enterro Prematuro)

Caminhar pelas ruas dos grandes centros urbanos permite-nos, se quisermos, observar a variedade da fauna humana. E, na multidão que nos rodeia, há um grupo que pouco ou nada merece da nossa atenção: aqueles que, para muitos, são não pessoas: mendigos, moradores de rua e até, ainda que injustamente, outros que, enquanto trabalham, são, para alguns dos chamados animais racionais, colocados nos níveis mais baixos da escala, como os que trabalham na limpeza urbana.

Há, no entanto, entre nós, pessoas que por si mesmas se tornaram não pessoas, aquelas que não despertam a menor atenção, quer pela sua figura quase invisível, quer porque se habituaram a uma vida nas sombras. Deste último grupo fazia parte o nosso personagem.

Apesar do nome pomposo, Hércules nada tinha em comum com o personagem mitológico grego. Alto e muito magro, quase todo ossos, rosto cadavérico e o corpo encurvado, sempre se vestia de preto e não era dado a relacionamentos, fossem de amor ou de amizade. Trabalhava em uma biblioteca e era responsável pela seção de livros raros, local muito conveniente para seu temperamento seco e sombrio. Passava o dia numa sala com uma dúzia de mesas com luminárias penduradas e, num canto, sua minúscula escrivaninha. A presença humana era representada por pesquisadores que ali apareciam e que, pela atividade a que se dedicavam, eram tão silenciosos quanto ele.

Mas sua vida não era nada vazia. Ele a encheu de livros. Era um leitor contumaz. Sempre levava um livro para casa, num subúrbio onde morava há décadas. Começava a ler na biblioteca e, muitas vezes, em casa, entrava pela madrugada imerso na leitura. Não seria exagero dizer que boa parte do acervo já havia passado por suas mãos, principalmente as raridades literárias das quais se orgulhava silenciosamente. Ler para ele era viver. E viver em um mundo muito diferente daquele em que os outros estavam.

No bairro onde morava, ele era apenas um excêntrico que não incomodava ninguém. De vez em quando entrava numa loja, pegava o que precisava, pagava e ia embora. Nem uma palavra se ouvia daquele personagem tão estranho e soturno, que era o que pensavam todos que o conheciam.

Os mais curiosos tentavam imaginar quais pensamentos podiam surgir em sua cabeça. O que ele pensava, como reagia à aproximação de uma pessoa, por que se mantinha tão distante e alheio aos outros humanos. E não faltava quem o considerasse, sério ou de brincadeira, como sendo de outro planeta, de outra dimensão, um estranho na pequena comunidade.

Assim Hércules ia construindo, com livros, seu mundo, e entre os autores que considerava seus favoritos destacavam-se dois: Edgar Alan Poe e Augusto dos Anjos, cujos trabalhos ele quase sabia de cor. Foi com eles que Hércules mais se identificou. Pode ser surpresa que um escritor que se notabilizou pelos contos de terror e um poeta caracterizado pelo que poderia ser chamado de romantismo mórbido fossem favoritos de alguém. Mas Hércules não era simplesmente alguém. Para ele, talvez inconscientemente, era nos textos desses autores que encontrava prazer literário. Entre tudo o que lera desses dois literatos destacavam-se um poema de Augusto dos Anjos – Psicologia de um vencido – e dois contos de Poe: O Enterro Prematuro e A Queda da Casa de Usher, que ele já lera dezenas de vezes, sempre imaginando a angústia do narrador do primeiro, enterrado vivo, e de Madeline Usher, que teve o mesmo destino. Hércules maravilhou-se com os recursos que o primeiro inventou para se livrar de um fim tão hediondo: a porta da cripta e a tampa do caixão, que se abria por dentro, comida e água colocadas ali dentro, a corda amarrada no pulso e um sino do lado de fora do túmulo. Doeu-lhe, também, o sofrimento da jovem Usher, que teve de lutar para escapar, em vão, da cripta onde seu corpo havia sido colocado ainda com vida.

É claro, então, que para muitos que o conheciam de vista – já que não se conhecia ninguém com quem ele tivesse trocado uma palavra – era loucura ou, pelo menos, excentricidade mórbida o costume de Hércules de caminhar lentamente pelo cemitério da cidade. Fazia isso duas vezes por dia: de manhã, a caminho da biblioteca; ao anoitecer, a caminho de casa. Ele morava numa rua paralela ao muro dos fundos do campo santo e atravessá-lo era cortar caminho, embora muitos preferissem caminhar um pouco mais ao redor da necrópole. Havia um portão na parede, nunca trancado, que servia de entrada e saída para aqueles que, algum dia, reverenciariam seus mortos.

Não era esse o propósito de Hércules nas suas travessias diárias. Os curiosos não sabiam o motivo de tal passeio fúnebre. Até porque o andar lento e cadenciado de Hércules sinalizava, para quem o observava, que havia um homem acima e além dos terrores dos mortais comuns.

Na verdade, ele cruzava o campo santo atento ao menor ruído que pudesse indicar que alguém estava suportando a torturante agonia de se ver, embora vivo, trancado em um caixão a pouco mais de um metro abaixo do nível do solo. O momento no qual ele prestava mais atenção era o sepultamento. Para ele, nessas ocasiões, havia o risco de o morto não estar morto e cabia a ele, atento a qualquer sinal de alerta, evitar que o erro do sepultamento extemporâneo se transformasse na certeza da morte. Não raro caminhava à noite pelas vielas da necrópole, pois sabia que o silêncio profundo poderia ser decisivo para uma vida.

O espírito humano muitas vezes desafia tanto o racionalista mais profundo como o observador mais astuto. E talvez seja ainda mais difícil prever como alguém que sofra de alguma forma de transtorno mental responderá a estímulos específicos, por mais simples que sejam.

Assim, ao mesmo tempo em que, em uma minúscula sala, ele cumpria uma rotina que certamente muitas pessoas aceitariam de bom grado, Hércules foi-se afastando gradualmente dos vivos. Os anos de leituras de terror e suas caminhadas ao sol ou sob a chuva pelo cemitério logo levaram suas esquisitices ao próximo nível.

Receber qualquer um dos pesquisadores em sua sala de biblioteca não o incomodava e nem despertava interesse. Eram homens e mulheres que se dedicavam, em absoluto silêncio, aos estudos, e o máximo que podia acontecer era uma saudação curta, lacônica, em voz baixa, à entrada, e outra à saída. Era a multidão anônima, a multidão barulhenta e inquieta das ruas que ele odiava. Incomodava-o profundamente mover-se entre todas as pessoas que bloqueavam seus passos, esbarrando nele e, às vezes, dirigindo-lhe insultos. Assim, era com um profundo suspiro de alívio que ele chegava ao portão do cemitério. Os funcionários da administração já o conheciam e, por uma questão de educação (e de respeito pela estranheza), cumprimentavam-no com um leve aceno de cabeça, que era respondido com outro, tão ou mais leve. Talvez aqueles que estavam encarregados do mundo silencioso dos mortos merecessem maior consideração da parte dele. E, com seus habituais passos lentos, ele começava sua busca por um quase cadáver esperando para ser libertado da antessala do Hades.

Com o tempo, porém, uma mudança começou a ocorrer em seu espírito. Em vez de se preocupar apenas em desenterrar alguém sepultado com vida, ele passou para outra etapa: a curiosidade de saber como era abrir os olhos e ver-se engolido pela escuridão fria da morte. Qual era a reação daqueles que, ao recuperarem a consciência, encontravam-se em uma situação tão terrivelmente extrema: gritavam, choravam, lutavam ou eram dominados por um pavor indescritível que os congelava e os matava quase instantaneamente?

A ideia de que essas perguntas precisavam ser respondidas cresceu em seu peito. Era um desafio que merecia resposta mas que, em si mesmo, era absolutamente impossível. Até onde sabia, não havia ninguém que tivesse passado por tal situação no mundo real para contar detalhadamente o que tinha vivido. E não considerava realmente crível o que lia nos livros, pois sabia que era imaginação do autor. A verdade só ficaria clara se encontrasse alguém que tivesse experimentado um momento tão dramático ou então se ele mesmo estivesse, durante dois ou três minutos, num caixão no fundo de uma sepultura.

Ante a inviabilidade da primeira hipótese, ele optou pela segunda. Morava sozinho em uma casa com quintal e, por isso, não foi difícil comprar e guardar a madeira necessária para fazer um caixão no qual ele caberia. Suas habilidades muito limitadas de carpintaria foram mais que suficientes para que ele fizesse, com a ajuda de serrote, martelo e pregos, uma caixa estreita na qual pudesse acomodar seu magro esqueleto.

No entanto, havia problemas logísticos. Como transportar o pseudocaixão sem atrair a atenção dos transeuntes? Ele não se preocupava com a curiosidade de quem quer que fosse, e muito menos da patuleia da vizinhança. Porém, era imperativo que a experiência fosse vivida à noite, muito tarde da noite, para que não houvesse ninguém na rua quando ele se dirigisse para a necrópole. Deveria, portanto, esperar uma noite sem lua, quando sua silhueta seria quase invisível aos olhos de um possível notívago, para realizar o que imaginava ser, ironicamente, a experiência de sua vida.

Para que não houvesse erro, ele revisava o procedimento quase todas as horas do dia. O primeiro passo seria a cova. Sairia depois da meia-noite, atravessaria a rua, caminharia até um ponto distante dos portões e, protegido pelo muro, cavaria um buraco de, pelo menos, um metro e meio de profundidade. Não seria difícil espalhar a terra ao redor do buraco e o cobriria com galhos e folhas secas. Estava apenas preocupado com o fato de essa ser uma tarefa que exigiria um pouco de luz e, por isso, foi obrigado a comprar uma lanterna. A segunda etapa seria o enterro propriamente dito. Sairia no mesmo horário, depois da meia-noite, carregando o caixão, que seria colocado no fundo da sepultura. Deitar-se-ia dentro dele, fecharia a tampa, que podia ser aberta pelo lado de dentro, e esperaria o tempo que achasse suficiente para viver a situação dos enterrados. Nada mais simples, mas responderia à pergunta que o obcecava.

Mas ele não tinha poder sobre os caprichos da natureza. Na data marcada, a noite estava iluminada por uma enorme lua cheia e não eram poucas as pessoas que entravam pela madrugada em longas conversas nas cadeiras colocadas nas calçadas. Testemunhas era algo que ele queria evitar a qualquer custo. Assim, adiou a experiência para uma noite de chuva, garantia de ruas desertas e ninguém nas janelas. Essa noite chegou trazendo uma verdadeira tempestade com raios, trovões, janelas trancadas e todos na cama, persignando-se ao estampido de cada trovão. Era o momento perfeito para seu experimento.

Então, no devido tempo, saiu de casa. A chuva estava mais forte do que ele esperava, mas não o suficiente para incomodá-lo. Molhar-se não era sua preocupação no momento. Como esperado, a rua estava deserta: portas e janelas fechadas, nenhum som ou sinal de vida. Atravessou a rua e entrou no cemitério pelo portão no muro. Foi difícil caminhar pelos becos lamacentos carregando o peso do caixão e lutando contra o vento forte que varria a cidade. Tropeçando, escorregando aqui e ali, chegou ao local onde estava a cova e percebeu que seu trabalho estaria perdido com mais alguns dias de chuva. Havia um pouco de água no fundo do buraco, mas nada que impedisse a colocação do caixão. Desajeitado, açoitado pelo vendaval, colocou o caixão no buraco e, escorregando na lama, praticamente caiu sobre ele. Esforçando-se o mais que podia, abriu a tampa e deitou-se com cuidado no ataúde, que havia afundado um pouco no solo lamacento. Hércules fechou a tampa e, a princípio, parabenizou-se por ter escapado da enchente que vinha de cima.

Quanto tempo ficaria lá? Um minuto, dois, cinco, dez? Não tinha relógio e se tivesse não teria utilidade. Ele estava agora na escuridão da morte e decidiu que contaria lentamente até cem. Talvez isso representasse tempo suficiente para o que esperava descobrir. E, ao ritmo da chuva, começou a contagem. Aos poucos, a terra nos lados do buraco, transformada em lama, ia se acumulando sobre o caixão, suavizando o ruído das gotas de chuva e, poucos dias depois, ao limparem a área do campo santo, os empregados encontraram, em um canto remoto, uma sepultura semissubmersa na qual um pequeno pedaço do caixão ainda era visível e, dentro dele, um cadáver cujo rosto retorcido e as mãos com as palmas para cima mostravam que ele estava vivo quando ali foi colocado.

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