Feliz, Hernán mal conseguia se segurar sobre seu cavalo. Não que aquilo fosse de se surpreender. Bebendo desde as três da tarde, a verdadeira surpresa era que ainda estivesse de pé. Mas o que mais ele poderia ter feito? Aquele era um dia de comemoração, e, como tal, deveria ser aproveitado ao máximo. Afinal, fora naquela tarde que finalmente havia resolvido de uma vez por todas suas pendências com Alejandro.
E que bela luta fora aquela! Sozinhos na encruzilhada, armados apenas com suas navalhas, os dois homens lutaram como feras selvagens, golpeando e cortando a torto e a direito, motivados pela ira alimentada por anos e anos de disputas sem fim. Isto é, até agora.
Trêbado, Hernán não podia deixar de gargalhar ao lembrar da expressão de seu oponente, os olhos esbugalhados, a cara branca enquanto ia ao chão tentando segurar a garganta aberta de orelha a orelha em um único talho. Bamboleando sobre seu cavalo, deixava sua alegria fluir desimpedida, dando vazão ao riso que quisera soltar durante o enterro do oponente, mas que, por conveniência, achara melhor segurar. Afinal, uma coisa era que suspeitassem de sua participação no evento, outra, que ele mesmo confirmasse seu envolvimento com um ato de indiscrição. Mas agora, longe dos olhos dos padres e das testemunhas, nada poderia impedi-lo de sentir o prazer de sua conquista.
Ainda assim, sua alegria não era de todo completa. Em meio à folia, vinham-lhe à mente as imagens da família de Alejandro. O olhar triste e perdido de seus pais, aqueles aimarás velhos, tão sulcados pelo tempo que mais pareciam árvores do que gente, era algo que o marcara bastante. Sozinhos, os velhos viam perecer ali não só sua fonte de sustento, mas também uma das últimas alegrias que a vida dura do campo lhes havia deixado, sendo absorvidos por seu próprio silêncio sofrido e pela perspectiva do fim de sua linhagem. Mas pior, talvez, fosse a dor da noiva de Alejandro. Diferentemente dos pais, a jovem de cabelos escuros vocalizava seus sentimentos em um choro sofrido e cadenciado, lamentando a partida de seu amor e o luto que ele lhe deixara por memória. De joelhos diante do caixão, ela chorava em uma tentativa desesperada de pôr fim à dor com suas lágrimas, sem saber que não haveria lágrimas o suficiente para livrar o peito daquele tormento.
Sim, a imagem daquela jovem de cabelos negros, tão negros como a noite, em seu vestido surrado, ajoelhada no auge de seu desespero, expondo o colo moreno mordiscado pelo sol, ficara gravada em sua mente como que por um ferro em brasa, voltando e voltando para o centro de seus pensamentos. Sendo franco consigo mesmo, Hernán sempre a achara bonita, não entendendo o que ela havia visto em um imbecil como o Alejandro. Mas agora que ele já não estava mais lá…
“Talvez”… pensou Hernán, tremendo de leve com a ideia… “talvez até valesse a pena fazer uma visitinha pra ela…”
O relincho abrupto do cavalo o trouxe de volta ao mundo real. Recuperando um pouco de sua consciência, Hernán conseguiu se aprumar bem a tempo dos primeiros corcoveios de sua montaria. Ainda assim, não foi sem uma certa dificuldade que conseguiu permanecer montado.
— ¡Eia, cabrón! ¿ Qué pasa?
Lutando para retomar o controle de sua montaria, Hernán procurava entender o que estava acontecendo com o cavalo. Bem treinado e corajoso, o castanho não era do tipo de ficar fazendo negaças, muito menos demonstrar medo. Até mesmo quando se via frente a frente com cobras, ele avançava, obedecendo ao seu cavaleiro como quem obedece a Deus. Agora, porém, lutava e se debatia para fora da estrada, desesperado para seguir por qualquer outro rumo que não aquele.
Sem ter outra escolha a não ser ceder, Hernán começou a puxar o cavalo para longe, ainda lutando para manter o controle a fim de evitar uma disparada repentina. Devagar, foi virando o animal na direção por onde viera, quando seus olhos perceberam algo se aproximando pela estrada.
A princípio, imaginou que, pelo tamanho, deveria ser algo que vinha ainda muito longe. Uma olhada mais atenta, no entanto, o fez perceber que não era bem aquilo. A não mais de três metros de distância, Hernán conseguia perceber que, fosse o que fosse, a coisa não era muito maior do que uma abóbora pequena, e, pelo que parecia, vinha rolando na sua direção.
Sentindo um calafrio lhe subir a espinha, Hernán se concentrou em concluir a meia-volta com o cavalo e retornar pelo caminho que havia tomado. Com os olhos fixos na estrada à sua frente, procurava ignorar aquela estranha visão às suas costas. Mas, ainda que conseguisse guiar seus olhos para um outro caminho, o mesmo não valia para sua atenção. Pois, por mais concentrado que estivesse na estrada, sentia sua nuca ser perfurada por um olhar fixo, como se algo, ou alguém, o encarasse de modo insistente. E se isso não bastasse, havia também o som. Seco e estranhamente ritmado, o tump, tump do movimento parecia segui-lo a cada passo dado, acelerando ou diminuindo conforme ele conduzia seu animal.
Persignando-se, o vaqueiro instigou sua montaria, rezando para que pudesse encontrar uma alma viva que fosse, mesmo sabendo o quão difícil aquilo poderia ser. Afinal, àquela hora, apenas 3 grupos se atreveriam a caminhar pela noite: os muito corajosos, confiantes em suas habilidades com a faca ou com a arma; os muito bêbados, caídos em seu torpor etílico; ou os mortos, senhores absolutos e incontestáveis da noite. Pelo tamanho, seu acompanhante não poderia ser uma pessoa, de modo que, excluindo os bravos e os ébrios, restava-lhe apenas a companhia do terceiro grupo…
“Isso é ridículo” dizia Hernán para si mesmo enquanto sentia o suor frio escorrer por sua testa, levando consigo todo o álcool de sua comemoração. “Deve ser só algum animal… um zorrilho. Isso, deve ser apenas um zorrilho. Só isso, e nada mais.”
Não que realmente acreditasse naquilo. O pânico que havia tomado seu cavalo, assim como a tensão que pouco a pouco rastejava por seu corpo eram indícios claros de que estava diante de algo que não fazia parte do mundo como ele conhecia. Afinal, não eram assim que começavam as histórias contadas por seus abuelos? Os animais, constantemente sensíveis a esse tipo de manifestação, eram sempre os primeiros a perceber que algo estava errado e, em sua fala irracional, tentavam alertar seus donos que, incapazes de reconhecer a linguagem dos brutos, precisavam sentir eles mesmos os sinais da aproximação: o frio anormal, os calafrios, o suor…
— Her… nán…
Pela primeira vez em toda aquela noite, o vaqueiro sentiu seu coração parar no peito. A voz, não mais alta do que um sussurro, o atingiu com a força de um tiro de carabina, de modo que, se não tivesse paralisado em cima do cavalo, ele certamente estaria caído no chão. Aquilo não era possível. Não. Ele o vira morrer. Ele cortara a garganta daquele homem de orelha a orelha e assistira enquanto o seu sangue quente alimentava a terra faminta. Mas, ainda assim, não havia como ter dúvidas: era a voz de Alejandro que ele estava ouvindo.
— Her… nán…
Agora mais próxima, ele percebia que a voz parecia ecoar com uma certa dificuldade, como se Alejandro, ou a criatura que se passava por ele, estivesse com dificuldade de articular sua fala. Não. Aquilo não era uma voz. Era… era… a bebida! Sim, ele havia bebido demais, e agora estava ouvindo coisas. Ou melhor, estava imaginando que ouvia coisas. Sim, era isso, e nada mais.
Esporeando seu cavalo, Hernán se esforçou para seguir em frente, resistindo com dificuldade à curiosidade de olhar para trás. Afinal, como ele mesmo pensara, poderia ser apenas a bebida que corria por seu sangue. Ainda assim, se fosse a bebida, por que ele não sentia mais seus outros efeitos? Na verdade, desde o instante em que vira aquele pequeno vulto a se aproximar, sentiu a sobriedade tomá-lo de assalto, dando adeus não só à sua tontura, mas também à visão turva e à mente anuviada. Mas, de novo, se ele não estivesse bêbado…
— Her… nán…
Atiçando mais a montaria, deixou que o cavalo avançasse no ritmo de um trote rápido, avançando mais e mais noite adentro, ignorando a voz que lhe chamava às costas.
— Her… nán…
“Não olhe.” repetia para si mesmo enquanto açoitava o pobre animal. “Faça o que fizer, não olhe para trás.”
— Her… nán…
Tremendo, o cavaleiro parecia sentir o hálito frio da assombração a acariciar os pelos de sua nuca, apesar da velocidade do trote, o que fez com que se lembrasse do velho ditado de seus avós: os mortos, afinal, viajavam depressa.
— Her… nán…
Seguindo em um trote ligeiro, o cavaleiro conseguia ouvir agora o som seco se transformar abruptamente, assumindo um tom úmido e pegajoso para acompanhar os passos do castanho. Este, desesperado, relinchava e tremia, dando voz aos terrores que corriam soltos no coração de seu condutor que, obstinadamente, se recusava a olhar para trás, concentrando-se em procurar, na estrada, o sinal de qualquer abrigo ou alma viva que pudesse vir em seu socorro.
Se ao menos estivesse perto de uma igreja…
— Her… nán … olhe… pra… mim… hijo… de… puta!
Agora não havia mais como duvidar de que aquela era a voz de Alejandro. Por mais alterada que estivesse, ele já ouvira aquela mesma frase ser proferida tantas vezes por seu rival, que conseguira memorizar até mesmo a cadência de sua fala, aprendendo mesmo a reconhecer a forma como ele cuspia cada sílaba de sua ofensa. Sim, agora não havia mais como negar: aquele era, de fato, seu antigo desafeto, o mesmo que fora enterrado no começo daquele dia, e que, para todos os efeitos, jazia na terra do campo santo.
Diferentemente das outras vezes em que ouviu aquele ataque, porém, Hernán não sentiu seu sangue ferver ou a raiva tomar as rédeas de sua mente. Antes, experimentou o coração afundar no seu peito, mergulhando em um vazio gelado que, pouco a pouco, parecia dominar sua vontade, forçando-o a agir contra seu instinto e obedecer ao pedido daquela voz. Aos poucos, se viu se virando, pela primeira vez, na direção do seu perseguidor, rezando a Deus e aos seus santos para que nada estivesse ali quando abrisse os olhos.
Suas preces, porém, estavam condenadas a cair nos ouvidos de um Deus surdo.
Pois, tão logo seus olhos se abriram para a vastidão da estrada às suas costas, se depararam com os olhos de Alejandro, saídos diretamente dos abismos que separavam os vivos dos mortos e ardendo com o fogo vermelho do Inferno, encarando-o diretamente de seu rosto pálido e sujo de terra e pó. O mais surpreendente, porém, era o fato de não haver corpo abaixo da linha do queixo. De fato, erguendo-se por meio de um conjunto de filamentos longos e fortes que Hernán imaginou serem seus cabelos, apenas a cabeça de seu adversário havia conseguido realizar sua jornada de volta, exatamente como nas histórias de seus avós.
— ¡Santa Madre de Díos! — berrou Hernán, reconhecendo a sinistra figura de seu inimigo, e esporeando o castanho, disparando noite afora.
Chutando as costelas do cavalo, tentava imprimir ainda mais velocidade à corrida do animal apavorado, esperando, assim, deixar o espectro para trás. Mas para seu desespero, o Catecate corria sempre junto de si, igualando a velocidade do cavalo com seus longos cabelos.
— ¡ Oye… cabrón!— ria Alejandro, inebriado com o pavor de seu rival, acelerando mais e mais os passos de seus cabelos longos como raízes — ¿A dónde… crees que… vas? Temos… coisas… a resolver!
Ignorando as provocações e gargalhadas, Hernán procurava, em vão, por uma forma de se livrar daquela assombração. Mas a estrada seguia vazia, e as casas mais próximas ainda permaneciam distantes demais para lhe oferecer abrigo. De instante em instante, lançava um olhar para trás, apenas para ver que a cabeça se aproximava cada vez mais de sua montaria, estendendo seus longos cabelos negros em sua direção.
Com o lombo do castanho já começando a verter sangue, Hernán sabia que não poderia exigir muito mais dele. Desesperados, tanto homem quanto animal já faziam todo o possível para escapar daquela sombra do Inferno. Na esperança de conseguir alguma distância, o cavaleiro puxou sua montaria para fora da estrada, esperando que a mudança de terreno pudesse refrear a velocidade de seu perseguidor. Mas em vão. Não importava por quantos barrancos ele subisse ou descesse, quantos campos atravessasse e cercas pulasse, Alejandro permanecia no seu encalço, ganhando terreno a cada légua percorrida.
Rezando para todos os seus santos, e prometendo-lhes o que podia e o que não podia, esperava ansiosamente por um milagre que o salvasse daquele algoz sobrenatural. E foi no instante em que já conseguia sentir os cabelos de espectro sobre a pele de seu pescoço que ele aconteceu.
Ao longe, através de um espesso arvoredo e da cerração da noite, silhuetas de uma pequena aglomeração começavam a se desenhar contra o horizonte, instigando em Hernán uma nesga de esperança. Se ele ao menos conseguisse chegar até lá antes de ser apanhado, talvez, e só talvez, ele poderia ter uma chance de sobreviver.
Ignorando a pena que ainda sentia, fustigou o castanho até fazê-lo espumar, em um último e derradeiro esforço rumo à salvação.
— ¿A dónde… crees que… vas? — berrava a cabeça, rindo loucamente enquanto se agarrava aos pelos da cauda do cavalo e começava a escalá-lo. — Temos… contas… a… acertar!
Agora a não mais do que alguns metros, Hernán já conseguia ver a pequena cerca que separava a mata das pequenas casinhas brancas. Aquilo não podia acontecer em melhor hora. Às suas costas, já conseguia ouvir o rastejar do cabelo do inimigo sobre o pelo macio do equino, assim como o agoniante ranger de seus dentes, de modo que não havia mais tempo a perder. Num último e desesperado lance de coragem, saltou de seu cavalo, deixando que o castanho se perdesse no interior da mata, arrastando a cabeça consigo, e atravessou a pequena cerca que o separava da civilização.
Caindo de mau jeito, sentiu uma dor terrível comprimir seu tornozelo direito enquanto rolava pelo chão. Ainda assim, sabia que aquela dor seria um preço pequeno a se pagar por sua salvação. Sem perder tempo, colocou-se de pé da melhor forma que pôde e correu, ainda que manco, em busca de um abrigo ou local de proteção, só muito depois percebendo onde realmente estava. Pois, em sua fuga louca noite adentro, havia terminado chegando por acaso ao cemitério da Santa Reparação, o mesmo em que, horas antes, haviam enterrado o seu rival.
Acaso? Algo naquela ideia o fazia tremer. Enquanto cambaleava por entre os túmulos e lápides daquele parque dos mortos, ponderava se fora realmente o acaso que lhe trouxera até ali. Pois ainda que o caminho de sua fuga tivesse lhe parecido aleatório, o fato de ele terminar precisamente naquele cemitério fazia com que duvidasse do simples acaso. E se, pensava, aquilo tudo não fora planejado por Alejandro, ou melhor, por seu espectro? Se fosse esse o caso, então ele não teria sido conduzido exatamente para onde ele queria que Hernán estivesse? E, sendo esse o caso…
As gargalhadas do Catecate interromperam seu fluxo de pensamento. Vindas de lugar nenhum, denunciavam a aproximação da criatura que, por meros instantes, parecia ter sido engolida pela noite junto com o cavalo de Hernán. Pego de surpresa por aquela demonstração de alegria infernal, Hernán apanhou sua navalha do interior da camisa, acelerando o passo manco em busca de algum lugar onde pudesse se esconder.
Cada vez mais frequentes, as risadas do espírito desnorteavam Hernán, que, incapaz de saber se elas vinham de perto ou de longe, se via mergulhado em um estado de tensão constante à medida que se embrenhava mais e mais necrópole adentro. Apenas com sua navalha em punho, amaldiçoava-se por não ter trazido sua arma, uma vez que, com ela, ao menos teria uma oportunidade de combatê-lo à distância. Com uma lâmina, porém, toda e qualquer luta teria que ser travada corpo a corpo, tal qual sua derradeira batalha com Alejandro.
A consciência dessa repetição não lhe trouxe qualquer tipo de alegria.
— Her… nán… — recomeçou o espírito, assobiando seu nome ao vento. — Por… que… não… ri… mais… Her… nán?
Recuando cada vez mais, contemplava a escuridão em meio às árvores e sobre os túmulos, esperando, talvez, conseguir vislumbrar a aproximação de seu perseguidor. Mas naquela terra dos mortos, apenas as trevas respondiam ao seu olhar. A cada passo, sentia o frio da noite e da morte a enregelar seus ossos, rastejando por baixo de sua pele com a velocidade de grandes insetos, enquanto, de algum lugar, Alejandro continuava com sua gargalhada infernal.
“Se ao menos o sol nascesse logo”, pensava, apertando o cabo de sua arma até sentir os nós dos dedos começarem a doer. Sim, com a chegada do sol, certamente aquele horror chegaria ao fim. Mas o céu, indiferente à sua situação, permanecia mergulhado na noite, estendendo seu longo dossel de uma escuridão quase roxa sobre a terra adormecida.
— Her… nán… — recomeçou o espírito, assobiando seu nome ao vento. — Por… que… segues… por… aí? Por… que… não …vi.. rar… à… esquer… da?
Ignorando as provocações da cabeça, Hernán seguia mancando por sua rota, acelerando o passo como podia, procurando freneticamente por um abrigo que fosse. Naquele ponto, até mesmo um mausoléu lhe parecia uma ideia convidativa. Sim, até mesmo aquele lugar que lhe provocava tanta repulsa e medo lhe parecia uma opção viável, contanto que…
Com um baque seco, Hernán se viu caindo ao chão pela segunda vez. Praguejando às cegas, agarrava o tornozelo ferido com suas duas mãos, tentando, de alguma forma, amenizar a dor, ignorando toda e qualquer coisa enquanto seu mundo era consumido numa explosão branca. Enquanto lágrimas corriam pelo canto de seus olhos, foi lentamente retornando ao momento presente, percebendo, primeiro que havia perdido a navalha, e só depois o buraco em que havia tropeçado.
Levantando-se com dificuldade, sentiu seus olhos focalizarem, pouco a pouco, no ambiente ao seu redor, reconhecendo os detalhes que haviam escapado naquele primeiro momento. Aquele buraco mesmo, por exemplo, havia sido escavado na base de uma lápide. Pequena e humilde, é verdade, mas, ainda assim, uma lápide. Olhando com mais atenção, notou que havia algo de estranho na terra revolvida, ainda que ele não soubesse exatamente o quê.
Caminhando rumo à lápide, conseguiu ler, ainda que com esforço tremendo, algumas poucas letras graças às lembranças das poucas aulas que tivera quando criança. Primeiro um A, depois um L. Um E e um J…
E foi então que ele percebeu.
Recuando com a pouca velocidade de que era capaz, viu-se derrubado novamente, desta vez, por algo que se prendera aos seus pés. Ganindo com a dor da pressão sobre o tornozelo torcido, procurava, em vão, movê-los, mas apenas para sentir a pressão sobre eles aumentar. Em meio à dor, notou as vinhas que eram os cabelos de Alejandro escalarem por seu corpo, amarrando e prendendo-o de encontro ao solo, muito antes da cabeça finalmente aparecer, iluminando as trevas com o fogo vermelho da vingança e do Inferno a animar seus olhos, e rindo com sua voz do além-túmulo:
— Hoje… resol… vemos… nos… sas… pen… dências…
***
Até hoje, ninguém no povoado de Santa Cecília sabe dizer com certeza o que aconteceu no cemitério da Santa Reparação naquela noite. Para o grande público, a morte de Hernán, cujo corpo fora encontrado ao lado da lápide de Alejandro, fora apenas uma coincidência mórbida, ou, a julgar pelas marcas de cordas em seus pulsos e pelo corpo exangue, um ato de vingança. Pelo menos, essa era a explicação oficial, ainda que seu assassino, ou assassinos, jamais tenham sido encontrados. O fato da terra do túmulo se encontrar revolvida, como se algo debaixo houvesse cavado para fora, permaneceu sendo apenas uma curiosidade a mais naquele caso peculiar.
Na boca do povo, porém, o oficial se perdia diante da lenda, e as línguas idosas e sábias perpetuavam a explicação que seria tomada como verdadeira por todos: que o Catecate, em sua sede de vingança, havia atravessado a fronteira que separa os vivos e mortos com o único intuito de perseguir e eliminar seu antigo rival.