A Psiquiatria Folclorica

A psiquiatria folclórica

O que a ciência não explica, a sabedoria popular esclarece. O inexplicável sempre foi fonte de avanços nas diversas áreas dos saberes, pois nós não lidamos bem com o mistério e o desconhecido. Assim, no início de quase tudo, achamos um mito ou lenda de caráter “explicativo”. Frente a um fenômeno natural, como a chuva ou uma enfermidade, principalmente as da mente, o folclore nos proporcionava uma resposta apaziguando (ou não) nossos corações.

Dessa forma não é surpresa alguma que, antes do CID (classificação internacional de doenças, hoje em sua 11º edição), as causas e os modos das doenças fossem explicados pela tradição oral. Os distúrbios psiquiátricos encontram aqui um lugar de destaque, principalmente por sua natureza invisível, remetendo ao sobrenatural.

Este é o momento para confessar um velho vício meu: o estudo pelo folclore brasileiro. Em algum momento, este se uniu à paixão pela psicologia e se transmutou em um hobbie um tanto peculiar. Caço em mitos e lendas nacionais explicações populares para distúrbios e transtornos da psique. Agora que o desabafo foi feito, gostaria de dividir com vocês um segredo mais íntimo: há anos sofro de paralisia do sono, algo que a maioria das pessoas já ouviu falar.

Ocorre que os distúrbios do sono, seja insônia, sonambulismo, terrores noturnos, entre outros, são demasiadamente comuns na população, se consolidando em um amplo campo de pesquisa e estudo, além de diversos filmes e histórias de terror. A paralisia do sono é bastante comum: estima-se que quatro a cada dez pessoas já tenham tido pelo menos um episódio.

Mas afinal o que é a paralisia do sono? A explicação cientifica é bem simples, trata-se da atividade do sono desencontrada entre o cérebro e o corpo. A pessoa está cognitivamente acordada, porém seu corpo permanece em estado de vigília, em geral só conseguindo movimentar voluntariamente os olhos e o diafragma. Causa extremo desconforto físico, como pressão no peito e abdômen, taquicardia e aumento da frequência respiratória. A sensação de pânico e perigo iminente estão presentes e podem vir acompanhados por alucinações visuais e/ou auditivas. Geralmente a paralisia pode durar de vinte segundos a dois minutos, porém qualquer um que já tenha tido essa experiência irá afirmar que a sensação é de eternidade. Há quem tenha um episódio único, aqueles que tem alguns durante a vida, e quem os tenha de forma crônica. Os motivos e a frequência, assim como o diagnóstico, só podem ser dados por um profissional após a análise do caso em particular.

Esse é o resumo da ciência acerca da paralisia do sono, lembrando que a 1ª classificação oficial sobre os distúrbios do sono é de 1979. Antes disso, as explicações eram outras. Para a paralisia do sono, em especial, há uma um tanto quanto aterrorizante.

Segundo Luís da Câmara Cascudo, a explicação para esse fenômeno no folclore brasileiro aparece em mitos dos povos originários, no povo Tupi, pela figura da Kerepiiua, uma velha responsável por agonias indizíveis durante o sono e o acordar. Outra representação do mal dormir entre esses povos é o Jurupari, que poderia levar à morte, com sua boca torta e sua flauta a tocar terrores noturnos. Na cultura sertaneja, havia um velho de barbas brancas, que sentava no peito de quem dormia, oprimindo sua respiração, impedindo que este se mexesse, para então arranhar seu rosto.

Talvez a lenda mais famosa e mais difundida sobre a origem da paralisia noturna seja a mineira Pisadeira, uma mulher muito magra, com dedos longos e secos, as unhas muito compridas. Seu rosto é descrito como tendo o queixo revirado, o nariz adunco, olhos acesos, sobrancelhas unidas e a boca eternamente arreganhada em um esganar. Ela usa suas pernas grossas e curtas para subir em quem dorme. Ali se faz confortável, se põe em pé e começa a pisar. Pisa em ritmo constante, cada vez mais apressado, pressionando quem dorme e oferecendo a visão horrenda de seu rosto. Por isso não se deve dormir logo após comer ou deixar bebês adormecendo de bruços, já que a Pisadeira tem preferência por infantes e pode esmagá-los em sua aparição.

Para além do folclore brasileiro, é possível localizar mitos e lendas sobre a paralisia do sono em quase todas as culturas e períodos históricos da humanidade. Atualmente, mesmo com os estudos e causas científicas, não se deixou de buscar outras causas para esse distúrbios, tendo em vista os crescentes relatos das “shadow people” ─ pessoas das sombras ─, vultos humanoides, relatados como alucinação visual por um número espantosamente alto de pessoas que sofrem de paralisia do sono.

Devo dizer que, a mim, pouco importa a explicação ou origem desse fenômeno, seja ele folclórico ou científico. Quando os olhos se abrem e nenhum músculo responde, o ar some, o coração quase rompe a pele do peito, chorar parece a única ação possível. São de vinte segundos a dois minutos em eterna danação. Não importa a origem, mas como lidar com esse pequeno inferno cotidiano. Ou como pará-lo.

Infelizmente, isso ninguém explica.

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