A Culinaria Sertaneja E Seus Temperos Macabros Parte 2

A culinária sertaneja e seus temperos macabros (parte 2)

Caros predadores, é grande a satisfação de tê-los de volta. Quem vos fala é Francisco Ferreira, um pirata da literatura, a seu dispor.

Aqui daremos continuidade ao último artigo, no qual tratamos do “Bugio moqueado” de Monteiro Lobato. Nele, falávamos sobre como o autor captura a atenção do leitor, lançando-o em um mundo de medo e trevas, em uma realidade instável, abrindo as portas para o terrível mal. Se quiser mais detalhes, pode acessá-lo aqui: [link]

Alerta de SPOILER: continue e não reclame depois!

No conto de Lobato, o ápice do terror acontece quando uma moça é obrigada a devorar seu amante, um pouco por dia. Não, predadores. Sem duplo sentido. No conto, vemos que, através de uma fresta da porta, de um quarto escuro, existe a figura de um homem pendurado e seco. À mesa, na sala de jantar, a mulher chora e treme ao ser forçada a comer a carne que do cadáver. Frente aos convidados, o marido dá a desculpa de se tratar de um prato típico do sertão: bugio moqueado, ou macaco assado.

O certo é que o canibalismo não é uma exclusividade de Monteiro Lobato, e vem servindo de tema à literatura há tempos…

Um certo teórico russo — Bakhtin —, nos lembra que o ato de comer é a primeira marca do homem sobre a terra; é sua ação primordial de transformar a natureza e ao mesmo tempo integrar-se a ela. Além disso, as representações anômalas desse ato sugerem a ruptura com o discurso do poder.

Sobre isso, digo que quando Lobato põe uma mulher sendo obrigada, por seu marido, a comer a carne de seu amante negro, ele está fazendo uma dupla denúncia: a da situação de opressão da mulher e do homem negro. Ambos, parceiros no amor e no castigo, impingido por um senhor, um típico coronel, um abastado do patriarcado rural brasileiro.

Desde de tempos remotos, o mito e a literatura associam o canibalismo ao poder. Na mitologia grega, Cronos, pai de Zeus, devorava seus filhos em uma ação desesperada. Ele tentava fugir de uma profecia que dizia que um de seus filhos iria matá-lo para assumir seu trono.

Já para os conquistadores europeus, a palavra “caniba” — da qual deriva canibal — era utilizada para se referir a todos os povos considerados inferiores na visão do colonizador.

Não é diferente no conto de Lobato. Nele, vemos um senhor de terras, que se sente ameaçado ao perder o controle sobre o desejo e sobre os atos de sua esposa e de seu empregado negro. Um homem que acredita ser dono também das pessoas e de suas atitudes.

A possibilidade de sua mulher engravidar de outro aumenta a tensão, uma vez que o filho ilegítimo poderia herdar as terras e outras riquezas. Mas, diferentemente de Cronos, esse coronel não irá devorar ninguém. Bom homem, ele reforçará sua posição de poder, obrigando a esposa infiel a mastigar seu empregado insubordinado, pedaço a pedaço.

Com isso, ele lança seus sádicos temperos, ao mesmo tempo em que coloca os amantes em situação socialmente inferior: agora eles são canibas, são canibais, seres considerados incivilizados, sem direitos e sem responsabilidades. Desfigura-os como seres humanos.

Não podemos perder de vista ainda o que gerou a insegurança do coronel. O amor, sim, o amor. O amar e ser amado, entregar-se sexualmente desfrutando dos prazeres da carne. Aqui, sim, a carne ganha o duplo sentido, também do gozo sexual.

O discurso do poder sempre visa a supressão desses prazeres, visto que são entendidos como atos de liberdade. Em “1984”, George Orwell deixa bem claro o quanto as instituições temem a paixão e o sexo entre os que se amam. Esse ato é visto como o bastião da autonomia, porém, mais que isso, a paixão é temida, pois pode tornar-se uma força irrefreável de transformações sociais, ameaçando a ordem posta.

No plano particular das personagens, elas não têm também esse direito, o coronel não lhes pode permitir que se amem, que se apaixonem, sob risco de perder seu poderio.

Assim, Monteiro Lobato, rompendo com os tabus de sua época, expõe a crueldade, que muitas vezes era e ainda é tolerada. Basta que pensemos, um pouco aquém da hipérbole de devorarem uns aos outros, quantas pessoas são impedidas de viverem suas paixões? O pai que proíbe o filho de ser bailarino, a mãe que impede a filha de seguir outra religião, o avô que não fala mais com o neto desde que descobriu que ele é gay, a mulher que tantas vezes escuta: “deveria ter pensado nisso quando abriu as pernas.” Todas essas situações são formas amenas de colocar o outro na situação de canibal, na situação inferior, e, sempre, em nome do poder ameaçado.

Muitas questões sobre o canibalismo e sobre as estratégias narrativas de Lobato ainda poderiam ser discutidas, mas por hoje é só.

Recomendado: SIM!

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Nos revemos em breve.

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