Sejam bem-vindos! Eu sou Francisco Ferreira, e este é o artigo de estreia da coluna Páginas de Sangue.
Irei tratar aqui, nestas parcas linhas que a primitiva capacidade de concentração nos concede, de alguns elementos que transformam histórias em nossas histórias preferidas, e um pouco também de suas possíveis interpretações.
É, começaremos com um clássico que, devido ao seu teor macabramente extravagante, foi mantido às sombras — coisa da grande mídia e seu insalubre modo de pensar.
Estamos falando dele, do mestre, do controverso, do infantilizado: Monteiro Lobato!
“Porra! Tá de sacanagem, Chico!?”
Muitos de vocês devem estar pensando nisso: “Vai falar do Sítio, da Emília? Isso aqui é terror.”
Não, confiem na voz que vos fala.
Como disse, um suprassumo do terror nacional fora relegado à marginalidade. Trata-se do conto “O bugio moqueado.” Escrita pelo autor de taubateense, a narrativa é daquelas não recomendadas a pessoas sensíveis. Se você for desse tipo, ou tiver problemas com SPOILER, pare por aqui.
A história contada em “O bugio moqueado” se passa no início do século XX, em algum recanto mal localizado do Centro-Oeste. Conta a desventura de um comerciante de gado que se depara com uma situação de causar calafrios em qualquer mente não sociopata. Qual é essa situação? Fica aí até o final…
Para dar densidade à trama, e conseguir abalar o leitor quando a possibilidade de um tremendo mal é aventada, o escritor bigodudo tece sua teia desde o início, nos envolvendo em uma atmosfera de insegurança e estranheza.
Principia o conto: “Má colocação! Minha pule é a 32 e já de saída o azar me põe na frente Ugarte… Ugarte é furão. Na quiniela anterior…”
Uma linguagem de jogo, mas bem que poderia ser latim ou tcheco. Não seja ingênuo… Dois ou três parágrafos desses podem causar uma situação de insegurança ao leitor, como um estrangeiro frente ao mundo desconhecido, como um homem desembarcando em um país exótico, tendo de sobreviver sem entender lhufas do que falam ao seu redor, como um anão em Valfenda!
É exatamente desse sentimento de insegurança que o medo se alimenta, pois, em um mundo desconhecido, qualquer coisa pode acontecer, inclusive as mais sombrias.
Preparada essa ponte, Monteiro lança sua isca, aquela que vai bem gostosa, que poucas almas resistem. Mexe com o apetite que faz as pessoas pararem ao redor do cadáver na rua, ou os motoristas darem uma freadinha para ver o acidente. Sim, o gosto pelo grotesco, gosto que também, vez ou outra, faz o povo eleger uns certos presidentes. O leitor morde essa isca e fica na expectativa de descobrir mais sobre uma tal culinária macabra: “Vi a mártir, branca que nem morta, diante do horrendo prato…”.
Não vamos esquecer, é claro, do apelo à vítima, pois se, no acidente que paramos para olhar, estiver alguém no limiar da vida, a comoção é ainda maior. Mestre nesse jogo, ele evoca a ideia da “mártir”, uma pessoa que sofre ou sofrerá demais.
Feito isso, ele ainda usará outros recursos para laçar seus leitores tais como: localização imprecisa e sempre longe, aquelas que doem as pernas só de pensar em passar perto. Bem depois de far, far, far way, dobrando à esquerda. Esses lugarejos inóspitos criam uma atmosfera exótica, reforçando a insegurança do leitor frente à realidade e ao impossível.
O cenário principal desse conto é um ambiente escuro, lúgubre, ao jeito dos castelos góticos. Porém trata-se de um casarão no Centro-Oeste. Casa grande de fazenda, casa em ruínas, que nosso imaginário já toma como local de injúrias e violências. Uma habitação que poderia ser de qualquer senhorzinho escravocrata dos séculos anteriores. Um lugar facilmente assombrado.
Assim que todo o nefando contexto narrativo estiver construído, ele afirma que a pobre moça, a “mártir”, podia estar sendo obrigada a jantar a carne do próprio amante, morto e moqueado. Um castigo infligido por seu marido.
Sim, passageiros, é a este ponto que chegamos: uma mulher devorando o próprio amante.
O interessante disso é pensar como a literatura se nutre do canibalismo, em diversas obras essa ideia é trabalhada de formas distintas e singulares.
Mas isso é assunto para a próxima postagem. Falaremos mais um pouco sobre “O bugio moqueado”, as metáforas do comer, e como Lobato expõe os tabus de sua época.
Até mais!